Educação

Projetos de violência e vida nas escolas

A necessidade do acolhimento aos estudantes tem sido a tônica das falas dos dirigentes escolares. E o nosso acolhimento? Quem nos acolhe?

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No final do mês de março, uma jovem de Barcelona denuncia na seção de cartas do jornal El País: não tem perspectivas e nem projetos para o futuro, apenas sobrevive. Mesmo empregada – uma condição rara, admite – suas possibilidades de viver “são nulas”.

Diante desse e de outros tantos relatos e estatísticas, faz sentido identificar na juventude um “pessimismo quanto ao futuro”, conforme indicou a pesquisa Gallup/Unicef publicada no final de 2021. Os detalhes da pesquisa a respeito da retomada de atividades presenciais são preocupantes. Os mais jovens, afirmam os pesquisadores, relatam mais problemas de saúde mental que os adultos: 36% se sentem frequentemente nervosos, preocupados ou ansiosos; 19%, deprimidos ou com pouca vontade de realizar atividades cotidianas. Entre os adultos, foram 30% e 15%, respectivamente.

No Brasil, esses números foram ainda mais altos: 48% dos adolescentes e jovens (41% dos meninos e 54% das meninas) se sentem frequentemente nervosos, preocupados ou ansiosos, e 22% dos adolescentes e jovens (15% dos meninos, 28% das meninas) dizem se sentir muitas vezes deprimidos ou com pouca vontade de realizar atividades cotidianas”.

‘Acolhimento’ envolve dar condições físicas e emocionais para que o profissional possa trabalhar com inteireza

Como o sofrimento psíquico dos jovens se expressa

Em menos de um semestre, temos já uma amostra. Na semana de 14 de março de 2022, em uma escola da Zona Leste da cidade de São Paulo, uma série de brigas do lado de fora eclodiu sob o boato de que havia na unidade escolar alguém armado, provocando medo e desespero nos estudantes. A polícia foi acionada. 

Em Belo Horizonte, um estudante do 9º ano tomou a decisão de levar à escola uma granada. Em Brasília, uma estudante do Ensino Médio foi esfaqueada pelo seu colega, fato que também ocorreu em São Paulo um dia antes. Um “surto coletivo” acometeu mais de 20 alunos em uma escola no Recife. As situações de violência e descontrole emocional empilham-se. Parece que a ideia de luta, que antes era coletiva e metafórica, agora é individualizada e imediata.

Paralelamente, a banalização – e até mesmo a exaltação – de atos de violência espraiam-se. Culturalmente, legitimamos situações em que a violência é permitida e a justiça com as próprias mãos é a saída para os problemas. O quanto dessa cultura incide sobre as crianças e jovens? 

Quando a jovem espanhola, mesmo empregada, não vê possibilidades de viver, quando os adolescentes não sentem mais vontade de fazer suas atividades escolares, o que eles nos contam sobre a vida nas sociedades contemporâneas? Cumprir tarefas que se acumulam, ser “resiliente”, competir para “superar” os demais e a si mesmo em metas sem-fim. A propaganda de um curso de inglês para crianças, veiculada na TV, não deixa dúvidas: “está comprovado: crianças que aprendem inglês têm mais chances de conseguir um emprego”. É esse o mundo ofertado às futuras gerações. 

Sintoma extremo destes tempos, o indivíduo que outrora reivindicaria condições dignas de trabalho, estudo e lazer, hoje se culpa por não ter tempo suficiente para estudar ou trabalhar mais. É uma dupla ação perversa: 1) é sempre possível fazer mais, mas não se fez por falta de empenho ou cuidado pessoal; e 2) para alcançar os lugares almejados, é necessário viver uma vida de privações .

O resultado é uma soma de tristeza, angústia, frustração e cansaço. Diante disso, como traçar um projeto de vida?

Luto, burocracia e desvalorização

Já no cotidiano das e dos adultos da escola, registram-se as seguintes cenas: no período de trabalho remoto, no grupo de WhatsApp de uma escola, uma professora avisa que uma colega daquele grupo havia perdido o pai pela da Covid-19. Horas mais tarde, o plano de aula semanal é cobrado de todos, inclusive da colega enlutada, sem nenhuma menção de solidariedade.

Tempos depois, com o retorno das atividades presenciais em São Paulo, a não vacinação dos professores trouxe sensação de insegurança e medo. Somado a isso, com o constante revezamento das turmas, a impressão de fazer o mesmo trabalho insistentemente, com pouca ou quase nenhuma sensação de avanço, colocou os professores na situação de Sísifo, personagem trágico da mitologia que eleva a pedra até o cume da montanha dia após dia, em um movimento de constante repetição.

Ter que se “reinventar” (palavra muito utilizada pelas instituições educacionais durante a pandemia), aprendendo a “utilizar ferramentas digitais” (afinal, no mundo administrado, não é preciso refletir, bastando ter a ferramenta certa) e dedicando horas a mais para preparar materiais palatáveis ao vídeo; a incessante “busca ativa” por alunos e alunas engolidos pelo cotidiano catastrófico da pandemia, em uma atividade próxima à da assistência social. Todos esses fatos geraram uma desesperança e um cansaço que se acumula até hoje.

A necessidade do acolhimento aos estudantes tem sido a tônica das falas dos dirigentes escolares. Entretanto, professores e professoras também idagam: “e o nosso acolhimento? Quem nos acolhe?”, entendendo-se “acolher” como algo mais amplo do que meramente “ouvir” – na nova gramática que as empresas adotam, esvaziando termos essenciais, nos parece urgente a compreensão de que “acolhimento” envolve dar condições físicas e emocionais para que o profissional possa trabalhar com inteireza.

Este indivíduo, o professor, fundamental nas escolas, sente-se desamparado. A forma fria com que as escolas buscaram retomar as atividades presenciais reflete-se no esvaziamento da sala dos professores. No estado de São Paulo, o bate papo junto à garrafa de café foi substituído pelo isolamento: cada um consulta o seu próprio telefone celular, peça indispensável para fazer aquilo que, nos corredores, tem sido chamado de “self service da formação” – seja para preparar alguma aula, assistir a alguma live sobre algum projeto específico ou cumprir a atividade pedagógica coletiva, uma vez que o Centro de Mídias da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) centralizou as aulas, as informações sobre os projetos e a própria formação dos professores em produtos que podem ser acessados pelo celular. Assim, aquilo que outrora era coletivo, agora acontece de forma remota e isolada.

O isolamento é um sintoma de que a instituição escolar está cada vez mais distante de algo que tentava há anos construir: seu traço acolhedor. Os profissionais da escola passam a trabalhar, cada vez mais, numa lógica de linha de produção. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que professores e professoras são apresentados ao debate sobre as competências socioemocionais dos estudantes, ignora-se o que este adulto – enlutado, empobrecido pelo desmonte de sua carreira profissional num país que sofre com a volta da inflação – também tem necessidade de acolhimento, de apoio para enfrentar suas próprias perdas e, sobretudo, de perceber-se como alguém que é respeitado em seus saberes e necessidades. O slogan da Seduc-SP de que “ninguém fica para trás” é um engodo. O professor foi abandonado há tempos.

Pois é esse mesmo professor que, na sala de aula, lida com um sistema precário. Apesar de toda a ênfase em “metodologias ativas” e na utilização de tecnologias (no estado de São Paulo, quase todas as classes foram equipadas com televisores, notebook e caixas de som), a Secretaria Escolar Digital (SED, a plataforma em que os profissionais atualizam seus diários de classe) e a plataforma CaEd (para realização de atividades e avaliações digitais) apresentam falhas e quedas constantes, impedindo que uma simples lista de presença seja preenchida. Ademais, membros da Seduc-SP parecem esquecer que as escolas possuem estruturas precárias, tendo algumas delas rachaduras nas paredes e tetos com perigo de queda.

É nessa escola paradoxal que professores e professoras dão aulas de uma nova disciplina no Ensino Médio, chamada “Projeto de Vida”. Uma vida que é, praticamente, pautada por ferramentas tecnológicas digitais que, além de não funcionarem bem, coexistem com um mundo sem perspectivas. Como conversar e projetar uma vida junto a estudantes para quem, como bem constatou Adorno (1950), “a vida já não vive”? É importante frisar a pergunta: como projetar a vida de estudantes e professores nessas condições?

Projeto de vida: que vida?

Em uma situação não tão hipotética quanto se pensa, uma professora de Projeto de Vida planejou dar uma aula em que discutiria com os estudantes a habilidade socioemocional da empatia. A aula pretendia trazer uma série de exemplos e seria finalizada com uma dinâmica. Ao chegar na classe, porém, os estudantes não estavam lá. Estão na sala de informática realizando a Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAP), exame oficial do governo paulista que acompanha bimestralmente as proficiências em Língua Portuguesa e Matemática dos estudantes.

O agente, que fica no corredor, informa que os alunos estão voltando para a sala de aula. Quando entram, a docente percebe que estão descontentes. Questiona se a prova foi muito difícil. Os alunos relatam que o site em que a prova seria realizada não funcionou, gerando aborrecimento, já que haviam perdido também a aula de Educação Física. A fim de esperar os estudantes se acalmarem, a professora decide fazer chamada, procedimento que, hoje em dia, é feito pelo próprio celular da professora, com acesso à SED. Entretanto, a plataforma está extremamente lenta para realizar essa tarefa.

A professora lembra, sem saber o número, da resolução que registra que o professor pode ser penalizado caso não preencha o diário de classe todo dia (Resolução SE n. 118/2021). Descontente, ela pretende começar a aula, mas ouve gritos no corredor. Os estudantes, já frustrados com a situação da prova não realizada, se agitam. Uma briga na sala ao lado causou todo o alvoroço. Uma aluna se aproxima e comenta que isso tem sido frequente na escola (a professora, que também atua em mais duas escolas para ter a carga horária completa, fica pouco nesta unidade) e que, além disso, estão sendo dispensados mais cedo por conta da falta de professores.

Em silêncio, e tentando adequar-se àquela situação, a professora modifica toda a aula. É mais empático deixar aquele momento para falar sobre as frustrações, dela e dos estudantes, que são inúmeras e crescentes? Quem sabe assim ela estivesse cumprindo com a exigência do “acolhimento” que professores e professoras são convocados a realizar como mais uma dentre as suas inúmeras tarefas em sala de aula. Mas será que, de fato, os estudantes estão sendo acolhidos em suas demandas, frustrações, receios e questionamentos?

Na esteira da expansão das escolas cívico-militares no país, o ambiente escolar ganha cada vez mais ares judicialistas e punitivistas, uma vez que o clima cultural geral demanda que a escola enfatize a sua postura autoritária para disciplinar os estudantes. A impressão que se tem é que vingança e punição estão atreladas. Ações pontuais tomadas após a ocorrência de alguma situação de violência não enfrentam o verdadeiro problema. Pelo contrário, camuflam um problema maior, pois encaram individualmente uma questão que é coletiva e ultrapassa o espaço da escola.

Há consequências em passarmos quase dois anos sem o convívio com pessoas desconhecidas, há consequências em exaltarmos episódios de violência nas ruas – rasgando placas e linchando pessoas –, na Câmara dos Deputados – exaltando torturadores –, na cerimônia do Oscar – dando tapas. A aparente descrença na escola, bem como a desconfiança no Outro, talvez sejam a demonstração de que o mérito – e não só ele –, criou uma forma peculiar de se pensar e agir no mundo: quero a escola melhor para o meu filho; exijo as melhores aulas para mim; eu não levo desaforo para casa; a lista seria infinita.

O Outro é figura-chave na construção tanto individual quanto social, e o seu apagamento tem sido, em grande medida, aquilo que faz com que crianças e adolescentes se sintam no direito de ignorar, violar e agredir colegas e professores. Isso, obviamente, também reflete uma sociedade que ignora, viola e agride a infância e a juventude em diferentes níveis e de forma sistêmica. A escola está inserida nesse contexto de múltiplas violências, contribuindo para a sua manutenção.

Entretanto, é também ela o espaço de abertura para conviver e conhecer o Outro, de aprender a conviver com os diferentes e, principalmente, o lugar em que, momentaneamente, podemos nos afastar do presentismo claustrofóbico do mundo administrado e projetar o futuro. É importante frisar que a escola é a instituição que reflete e investe no futuro e, para tanto, há de haver esperança.

Parece ser urgente – mais do que apenas atender à demanda de uma disciplina chamada “projeto de vida” que atende à sanha das empresas educacionais – pensarmos coletivamente num projeto de escola, de cidade, de país e de mundo para que a vida seja possível. A escola é o espaço por excelência de concretização de novas formas de reexistência (dialogando com Zé Celso Martinez Corrêa), tanto no hoje quanto no amanhã.

 

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