Educação

Professores convocam policiais contra programa de segurança de Doria

‘Se não é possível conclamar união entre policiais e professores em outras lutas, é desnecessário antecipar este conflito entre servidores’

Créditos: EBC
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Dois professores da rede estadual de São Paulo elaboraram uma carta aberta aos policiais do Estado, convocando-os a se colocarem contra o programa de segurança escolar anunciado pelo governador, João Doria, na última semana. A iniciativa, que ainda não tem data para ser implantada, prevê a contratação de policiais militares fora de serviço para fazer ronda escolar, além de policiais da reserva para atuar em palestras nas unidades de ensino e assumir funções administrativas.

O governador também pretende enviar um projeto de lei para a Assembleia Legislativa com medidas disciplinares para responsabilizar os alunos por atos violentos ou de vandalismo.

 

Na carta, os autores condenam a iniciativa e colocam que a gestão das escolas estaduais é obrigação constitucional dos executivos das unidades federativas, “e nosso alunato não é questão policial”. Os professores convidam os policiais, também servidores, a refletirem sobre as condições de trabalho defasadas que o Estado impõe à categoria.

“Utilizando de modo oportunista a tragédia da EE Raul Brasil, em Suzano, e a lamentável agressão sofrida por nossa colega professora em Carapicuíba, o governador Dória está procurando utilizar a PM para a intimidar estudantes e professores, num momento de implementação de reformas na Educação. Vocês não têm preparo para isso, não têm obrigação de mediar conflitos nas escolas e muito menos merecem ser utilizados para projetos políticos exclusivamentes pessoais. O Estado sequer convocou todos os aprovados no último concurso para agentes escolares, realizado em 2018″, diz outro trecho da carta.

Confira abaixo a carta direcionada aos policiais na íntegra:

É difícil começar uma carta endereçada a quem também é servidor, ganha tão mal como a gente e acaba tendo ordem superior para nos silenciar, mesmo quase sempre concordando individualmente com nossas reivindicações. O faremos por ser necessário, pois Educação e Segurança Pública são obrigações constitucionais e escola e polícia instituições de Estado, não instrumentos suscetíveis à taras de governos e projetos pessoais.

Nosso objetivo é muito claro, abrir debate público com os policiais militares sobre o anúncio feito pelo governador João Dória, no último dia 5, que prevê ‘militarização branca’ de parte da segurança da rede de ensino paulista, utilizando para tal PMs em folga e da reserva.

Quando nós, professoras e professores, vos encontramos em atos e exigimos o fim da Polícia Militar, não é por desprezarmos os méritos que têm como servidores ou as dificuldades do que são obrigados a cumprir. Vocês bem sabem que militarização é uma amarra ‘ilegítima’ que perpetua vícios de formação. O próprio Estado lhes impõe uma espécie de subcidadania, lhes negando o direito a se organizarem como os demais trabalhadores, lhes tolhendo sindicalização e direito de greve, assim como de livre manifestação de pensamento e opinião. Não por acaso, mais de 70% da categoria é contrária a ela, segundo pesquisas amplamente divulgadas e ignoradas pelo poder público.

Se antes já não era bom, a repressão foi oficialmente imposta como Política de Estado após a Primavera de Junho e a iminência da Copa Mundo e dos Jogos Olímpicos. Eis o legado dos eventos internacionais sediados no Brasil, o crescimento exponencial da escala repressiva e criminalização das lutas sociais. Neste meio tempo, o país passou por um impeachment/golpe, o desmonte de toda a rede de proteção social está sob ameaça, e vocês já terão a tarefa ingrata de caucionar o silenciamento de uma reação civil a qual a Educação já demonstrou que não se privará.

Nós sabemos que, no fundo, se sentem contemplados quando, em atos, entoamos que ‘Você, aí fardado, também é explorado!’.

Nem entraremos aqui na Reforma da Previdência. Como os professores, policiais também são contra este sequestro constitucional, uma vez que o desmonte atinge a todo o conjunto da classe trabalhadora.

O Dória quer falar de experiências positivas entre policiais e Educação? Para além das balas de borracha e bombas de gás, temos algumas boas.

Em 2015, no auge das ocupações estudantis, um PM aproveitou sua folga para se aproximar, na madrugada, de uma das escolas. Ele havia estudado lá e chamou o garoto responsável pela segurança, naquele dia, para dizer que estava morrendo de orgulho por vir os jovens da comunidade em que cresceu lutando por ela. Chorou muito e pediu anonimato, e os estudantes jamais compartilharam isso, mesmo passando por toda a repressão que enfrentam desde aquele movimento. Como nós, sabiam que alí estava um cidadão tentando dignificar a farda que usa. Por outras vias, foi o que aquele parceiro de vocês procurou fazer no dia da Parada Gay, mostrar para a sociedade que são seres humanos e que nenhum fardamento pode ser entendido como uma jaula individual.

Trabalhamos com familiares de policiais. Há muitos casais formados entre membros de nossas categorias. Falemos de um deles, relatado por uma colega que trabalha com um professor de nosso entorno. O drama é dos dois, pois seu marido se priva até mesmo de ensinar a filha, que tanto ama, a andar de bicicleta, em seus dias de folga, por saber os riscos aos quais cada um de vocês está exposto. A garota adora o pai que tem, mas tá crescendo vendo seu uniforme de ofício ser secado atrás da geladeira, enquanto todas as outras peças da família o fazem no varal.

Vocês acham mesmo que não temos noção do que vivem?

O que um policial precisa é de melhor recompensação financeira, condições de trabalho e a liberdade que uma instituição militarizada é por sua própria natureza incapaz de conferir a quem a ela está submetido. É infâme institucionalizar o ‘bico’ que muitos de vocês já se veem obrigados, em razão da desvalorização salarial que atinge o grosso dos servidores do nosso estado.

Utilizando de modo oportunista a tragédia da EE Raul Brasil, em Suzano, e a lamentável agressão sofrida por nossa colega professora em Carapicuíba, o governador Dória está procurando utilizar a PM para a intimidar estudantes e professores, num momento de implementação de reformas na Educação. Vocês não têm preparo para isso, não têm obrigação de mediar conflitos nas escolas e muito menos merecem ser utilizados para projetos políticos exclusivamentes pessoais. O Estado sequer convocou todos os aprovados no último concurso para agentes escolares, realizado em 2018.

O ECA e Gestão Democrática são leis federais e soberanas dentro das escolas brasileiras. Nem a sociedade civil e muito menos a polícia pode ficar suscetível a este tipo de imposição e uma medida desta natureza jamais poderia ser simplesmente ‘anunciada’ e logo implementada. Se o governador quer, que tenhamos Audiência Pública e debate democrático sobre Violência Escolar, e que ele respeite os ritos do Estado Democrático de Direito. São Paulo não tem déspota e muito menos nossa rede de ensino um dono.

Gestão de escola estadual é obrigação constitucional dos Executivos das Unidades Federativas, e nosso alunato não é Questão Policial. Deve partir de vocês uma cobrança ao Comando Maior da Polícia Militar paulista para que este homem seja demovido desta ideia. O Secretário de Educação nitidamente não concorda, nós também não, os estudantes são imprevisíveis e terão toda razão, e o nosso apoio, se repudiarem.

Somos todos trabalhadores/servidores, e não títeres de político megalomaníaco.

Se não é possível conclamar união entre policiais e professores em outras lutas, também é desnecessário antecipar este conflito entre servidores estaduais. Cada um no seu quadrado, e não há razão para que nosso espaço seja transformada em praça de guerra. Vocês nos quartéis, nós nas escolas e o governador respeitando os limites que lhe são impostos pelas leis. É assim que país funciona sob normalidade institucional.

Como professores, perguntamos: Ainda a temos em São Paulo, policiais?

Por Lamira Oliveira e Douglas Oliveira

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