Educação

Por que a direita e o bolsonarismo atacam a Uerj?

Alvo histórico de propostas de privatização, a universidade foi bastião da luta pela democratização e pioneira na implementação de cotas

Tânia Rego/Agência Brasil
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Rio de Janeiro – “A Universidade do Estado do Rio de Janeiro sempre foi vista como um bastião de resistência e uma alavanca para as transformações sociais tão necessárias no Brasil. A obsessão em destruir a Uerj está inserida numa lógica das elites de acabar com o ensino público”. A frase do economista Marcos Cortesão resume a indignação de muitos ex-alunos desde que foi protocolado na Assembleia Legislativa do Rio mais um projeto com o objetivo de entregar a universidade à iniciativa privada.

O ataque partiu do deputado estadual Anderson Moraes, do PSL, e se insere em um longa batalha pela extinção da universidade, considerada símbolo da inclusão social e da mobilização política no Rio de Janeiro. A primeira proposta de privatização da universidade (de autoria de Roberto Jefferson, à época deputado estadual) data dos anos 90.

O projeto de Moraes, contudo, tem pouquíssima chance de prosperar. O presidente da Assembleia Legislativa, deputado André Ceciliano (PT), já afirmou que não pautará a questão em plenário. A repercussão pública também joga contra. Dez reitores de diversas instituições públicas de pesquisa – tendo à frente UFRJ, UFF e Unirio – divulgaram um manifesto contra a privatização da Uerj. O documento afirma que a Uerj “ocupa lugar de destaque na produção científica nacional e no processo de inclusão no ambiente universitário”.

Para Cortesão, a Uerj vai em sentido contrário ao ministro da Educação, Milton Ribeiro, que diz que a universidade deve ser para poucos: “A agenda do governo Bolsonaro busca extinguir possibilidades, mas eu acredito na capacidade de resiliência da universidade brasileira em não permitir que essas conquistas civilizatórias sejam suprimidas”.

Histórico de luta

Para Cortesão, que foi presidente do Diretório Central dos Estudantes, a Uerj é referência histórica na luta contra a ditadura militar e pela democratização do País. Além da participação ativa no movimento Diretas Já, ele ressalta o pioneirismo da universidade carioca em outras lutas com repercussão e consequências nacionais como, por exemplo, as eleições diretas para reitor ou, mais recentemente, a adoção de uma política de cotas sociais e raciais.

“Ao longo das décadas de setenta e oitenta a Uerj protagonizou diversos momentos de engajamento, como a luta pelas diretas e por uma nova Constituição, entre outras”, lembra outro ex-aluno e dirigente do DCE da Uerj, o ex-ministro Celso Pansera, que foi chefiou Ciência, Tecnologia e Inovação no governo Dilma. “Depois, vieram as lutas contra Collor e o enfrentamento às privatizações no governo FHC, só para lembrar dois momentos dos quais participei ativamente e a Uerj sempre comparecia com sua energia militante.”, completa.

Também ex-aluno e ex-presidente do DCE-Uerj, o ex-deputado e ex-presidente da seccional fluminense da OAB Wadih Damous cita a própria história: “Minha cidadania e formação ético-moral, intelectual e profissional têm raízes profundas na Uerj. Ali eu combati a ditadura e construí o que eu tenho hoje, na minha trajetória pública, de preocupação com o Brasil, com a justiça social e a igualdade”, diz.

O orgulho dos três ex-alunos se justifica. Na década de oitenta, a Uerj foi a primeira universidade do Brasil a fazer um congresso interno. Foi também pioneira na luta pela democratização da escolha do reitor, movimento que se inseriu no momento histórico de aspiração democrática e luta contra a ditadura. À época, a Uerj realizou um congresso interno e organizou campanhas ostensivas em defesa do ensino público e do financiamento público da educação superior.

Após algumas idas e vindas, em 1988 o professor Ivo Barbieri foi o primeiro reitor eleito diretamente pela comunidade universitária no Brasil pós-ditadura: “Não foi um processo fácil, houve muita resistência e muita mobilização até a véspera. Havia o receio que uma liminar impedisse aquela eleição direta”, lembra Cortesão. Mas, Barbieri foi empossado, uma grande vitória para a democracia brasileira na ocasião.

Logo em seguida, a Uerj iniciou o pioneiro processo que ficou conhecido como “estatuinte”, modelo depois reproduzido em várias universidades brasileiras: “Elaborar um novo estatuto significava fazer o debate interno e discutir o papel institucional da universidade, como ela se encaixava na sociedade fluminense do ponto de vista do ensino, da CT&I, da indústria e da economia”.

Desmonte

A Uerj se tornou alvo preferencial da política de desmonte das universidades promovida pelo governo Bolsonaro e seus aliados. Mas o processo não começou com o ex-capitão, ressalta Celso Pansera, lembrando a Ponte Para o Futuro, programa que norteou o governo de Michel Temer após a derrubada de Dilma Rousseff : “De lá para cá, a redução nos investimentos em ensino superior e ciência se acentuou. Em 2022, o governo federal irá gastar o equivalente a 2003 em CT&I”, lamenta. “Retrocedemos 20 anos.”

“Desmontar a Uerj significa desmontar o setor de CT&I no Rio de Janeiro. O país que não investe em ciência e tecnologia retrocede. O modelo bolsonarista de governo quer levar o Brasil de volta à Idade da Pedra”, completa Wadih Damous, para quem o setor de CT&I da Uerj abriga áreas de excelência que influenciam toda a economia do estado.

Cortesão lamenta que, após a interrupção do fluxo de financiamento, não há mais como recomeçar diversas pesquisas que foram paralisadas: “Muitas vezes se perde dez, vinte ou trinta anos de pesquisa. Isso trará consequências seríssimas para o Brasil em termos de competitividade internacional e desenvolvimento da indústria nacional”.

Um bom exemplo do dinamismo do setor de pesquisa e inovação na Uerj foi demonstrado durante a pandemia de Covid-19. O Departamento de Biofísica e Biometria da universidade desenvolveu dois aparelhos capazes de monitorar a carga viral do ar tanto em ambientes fechados quanto em espaços abertos. Ainda em fase de testes, o CoronaTrap é uma evolução em relação ao antecessor lançado no ano passado, o CoronaTrack, por não mais depender de um portador individual em movimento para fazer o monitoramento dos aerossóis presentes nos ambientes.

Na primeira fase do projeto realizado pelo Laboratório de Radioecologia e Mudanças Globais (Laramg), protótipos do CoronaTrap serão instalados em escolas da rede pública estadual. Em seguida, sua utilização será estendida a hospitais e restaurantes. Responsável pelo projeto, o professor Heitor Evangelista destaca o “potencial revolucionário” da nova tecnologia nos estudos sobre contágios e diz que os pesquisadores da Uerj já trabalham na etapa seguinte do projeto: “O próximo passo é determinar a presença do vírus em tempo real, sem precisar levar a amostra para o laboratório”.

Cotas

O ataque a Uerj é encarado também como um ataque também ao sistema de cotas do qual a universidade carioca é estandarte. “A Uerj tem um sistema avançado de cotas, é pioneira em nível nacional. Diversas outras universidades a imitaram até que isso virasse lei”, lembra Wadih Damous. “Se a Uerj for de fato extinta, sofrerão a educação, a universidade pública e o processo educacional brasileiro como um todo. Mas, quem vai pagar o preço maior serão os pobres, sobretudo os cotistas. E, nós sabemos que do sistema de cotas saíram estudantes que se tornaram depois profissionais brilhantes.”

Pansera atesta a mudança no perfil demográfico da universidade: “Quem frequentou a Uerj nos anos 80 e 90 e esteve por lá nos últimos cinco anos sabe bem como a composição social e racial mudou. Não precisa olhar dados estatísticos, basta andar pelos corredores nas horas de intervalo. Uma mudança nítida aos olhos e muito positiva para a sociedade. A política de cotas foi um enorme passo no resgate histórico com a população marginalizada por tantos séculos”.

“Hoje a Uerj é uma universidade multifacetada, plural, colorida e com participação popular”, acrescenta Cortesão. Ele lembra que, mesmo antes das cotas, a universidade sempre teve como diferenciação o acesso facilitado aos estudantes mais pobres por ter metade de suas vagas ofertadas em cursos noturnos: “Os alunos trabalhavam de dia e encontravam na Uerj uma oportunidade de ensino de qualidade para realizar sua formação. Isso não era oferecido por nenhuma outra universidade pública no Brasil”.

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