Educação

Paradoxos da Guerra

O sociólogo Miguel Centeno 
explica como os conflitos armados criam coletivos sociais 
e dizem muito a respeito da condição humana

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No mesmo ano do centenário do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), conflito seminal que definiu grande parte dos arranjos geopolíticos e dos embates entre nações no século XX, o mundo assiste a uma escalada da violência organizada no Oriente Médio, ao mesmo tempo que vê com temor o aumento da tensão entre Estados Unidos e Rússia, por causa da situação na Ucrânia.

Responsável por imagens de horror e pela morte e sofrimento de milhões de pessoas ao longo dos séculos, a guerra é, paradoxalmente, parte indissociável da experiência humana. É o que defende o cubano-americano Miguel Angel Centeno, 57 anos, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

Em 2014, Centeno foi responsável por ministrar a alunos no mundo todo, simultaneamente, a aula ‘Os Paradoxos da Guerra’, em que explora as razões e contradições existentes nos conflitos armados existentes ao longo da história da humanidade. O curso, disputado em sua versão presencial na Universidade de Princeton, foi dado no formato de um MOOC, curso online sem limites de vagas, por meio da plataforma Coursera.

Em entrevista concedida por e-mail a Carta Educação, Centeno fala sobre como as guerras nos ajudam a entender as sociedades envolvidas no conflito, analisa o atual embate na Faixa de Gaza e releva qual pode ser o lado bom da guerra.

Carta na Escola: Recentemente, o senhor ministrou o curso Os Paradoxos da Guerra, na plataforma de ensino online Coursera. Poderia falar um pouco mais sobre a experiência?
Miguel Centeno: Foi maravilhosa, pois ampliou o público que conhece essa parte do meu trabalho e também me expôs a comentários, críticas e sugestões muito mais amplas do que as que eu geralmente recebo de outros acadêmicos ou de estudantes. Ao mesmo tempo, foi um pouco frustrante não ter feito justiça à plataforma online. Eu a tratei mais como uma aula televisionada, quando deveria ter me empenhado mais em utilizar ferramentas interativas.

CE: Quais são os principais paradoxos que podemos encontrar na experiência da guerra e da violência organizada? 
MC: O paradoxo central, em torno do qual o curso se organiza, é que o conflito armado pode ser um ingrediente essencial para a criação dos coletivos sociais. Ou seja, é a ameaça externa que força a unidade interna. O conflito também origina o espírito de sacrifício, essencialmente único no comportamento humano. Simplificando, o nosso melhor e o nosso pior surgem simultaneamente durante os conflitos armados.

CE: É impossível definir uma causa única para todas as guerras. No entanto, é possível enumerar as principais razões que levam países a entrar em guerra? 
MC: Nas aulas, enfatizei três motivações principais. A mais simples é a necessidade de bens materiais ou ganância – nós desejamos aquilo que pertence ao outro. A segunda é como a população passa a se perceber (por exemplo, se ela acredita estar sendo atacada) e a perceber o outro. Nós podemos ser ensinados tanto a amar quanto a odiar. A terceira é mais complexa e tem a ver com a psicologia das massas, sua reação a ameaças e a inércia ao ódio e à violência – uma vez que ela começa, fica difícil de ser freada.

CE: O senhor afirmou que a guerra pode ser “uma lente através da qual podemos entender as sociedades que a praticam”. Pode dar exemplos contemporâneos de como a guerra pode nos ensinar sobre as sociedades envolvidas nela? 
MC: Pense em como os Estados Unidos lutam, com equipamentos esmagadores e alta tecnologia expressa por meio de patriotismo do Estado e exércitos de massa. Agora, pense em como lutam clãs tribais na Somália, com pequenas unidades, baixa tecnologia e diferentes arranjos de lealdade. O modo como uma sociedade luta nos diz muito sobre como ela vê a si mesma, como vê os outros, e do que ela é capaz, para o bem ou para o mal.

guerra

CE: O que o conflito atual na Faixa de Gaza pode nos ensinar sobre palestinos e israelenses? 
MC: O mais triste é o que ambos os lados do conflito compartilham a inabilidade de compreender que a violência não vai mudar a situação política. Ambos estão convencidos de que, por meio da violência, o outro lado vai desistir. Não acredito que isso vá acontecer. Ao mesmo tempo, note que ambos os lados veem a si mesmos como vítimas. Os dois são diferentes nos recursos materiais, financeiros e no modo como guerreiam, afinal, trata-se de uma sociedade muito rica e de outra muito pobre, mas, no fim, ambos são surpreendentemente parecidos.

CE: Ainda sobre o conflito na Faixa de Gaza, por que uma nação inimiga ataca escolas ou alvos civis como Israel fez nas últimas semanas? 
MC: A linha entre civis e militares tem sido quebrada mais vezes do que se tem observado. Certamente, durante o século XX essa separação tornou-se cada vez mais tênue. A questão em Gaza é se Israel está deliberadamente tentando aterrorizar a população ou apenas aceitando mais “efeitos colaterais” do que muitos, inclusive eu, acham eticamente justificáveis. Nunca a tentativa de aterrorizar a população funcionou. Israel está apenas prolongando o conflito para as próximas décadas.

CE: Na Guerra do Vietnã, cenas televisionadas ajudaram a fomentar a oposição à guerra. O senhor acredita que algo assim possa acontecer no conflito entre o Hamas e Israel?

MC: Acredito que isso já esteja acontecendo, mas para mim é impressionante como o mundo responde de maneira diversa a diferentes números de morte e sofrimento.

CE: É possível encontrar algum aspecto positivo em uma guerra? 

MC: Para alguns indivíduos, a guerra pode ser uma mudança de vida muito positiva. Da mesma forma, nas sociedades, o sacrifício dos mortos e feridos pode produzir mudanças sociais importantes, como a democracia e uma maior igualdade. É mais importante livrar-se da noção de que a guerra é boa ou é ruim. Trata-se da violência em sua máxima potência, mas cada um dos lados envolvidos, em geral, pensa estar certo em agir assim. Nós precisamos estudar a guerra de uma maneira mais isenta de valores.

CE: O senhor afirmou que a guerra pode produzir mudanças sociais positivas, como o surgimento da democracia e o aumento da igualdade. Pode dar exemplos?
MC: Muitas das primeiras formas das políticas do Estado do Bem-Estar Social têm sua origem na massificação dos exércitos europeus. Certamente, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial ajudaram a consolidar o Estado do Bem-Estar Social. A relação entre serviço militar obrigatório e a cidadania remonta à Grécia.

CE: A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) completou cem anos em 2014. Que legados o conflito deixou?
MC: Pelo lado bom, a Primeira Guerra Mundial representou um momento-chave no aumento da igualdade e da democracia para muitas das nações envolvidas. Ela também mostrou o show de horrores que a humanidade pode fazer (mas não dispensamos atenção suficiente para isso). Pelo lado ruim, geopoliticamente não há dúvidas de que o esfacelamento de impérios, ao fim da Primeira Guerra Mundial, e a ascensão de suas nações ainda são responsáveis por grande parte da violência existente no mundo atual.

CE: Quais foram esses impérios e como eles são responsáveis por parte da violência existente no mundo atual? 
MC: Desapareceram os impérios Germânico, dos Habsburgo, Russo e Otomano. O colapso do segundo ainda repercute nos conflitos étnicos da Europa Oriental. O mesmo pode ser dito sobre o colapso do Império Russo, na medida em que suas fronteiras acabaram por originar a Segunda Guerra Mundial e o seu desenvolvimento. Mais importante: praticamente todo o horror e a crise acontecendo hoje no Oriente Médio têm suas raízes na tentativa europeia de redefinir as fronteiras a partir da carcaça do Império Otomano.

CE: O senhor acredita que viveremos novamente uma guerra mundial no futuro próximo?
MC: Espero que não. O principal motivo é que as formas de violência se tornaram tão avançadas que a tentação de usá-las seria impossível de resistir e isso levaria a uma rápida forma de mútua aniquilação. No entanto, as pessoas faziam exatamente a mesma crítica em 1900.

CE: Em sua opinião, como o tema da guerra poderia ser abordado no Ensino Médio? Em outras palavras, que aspectos da guerra um professor de História poderia trabalhar com seus alunos adolescentes? 
MC: Acho que as guerras nos oferecem a chance de ensinar três lições. A primeira é como os indivíduos se comportam diante da violência e como eles podem ser treinados. A outra é como as organizações políticas surgem e o que elas falham em fazer. Por fim, quanto da história da humanidade é simplesmente produto do sofrimento massivo.

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