Educação

Os limites do ‘Pé de Meia’, programa do governo para combater a evasão escolar

Embora vejam com bons olhos o novo programa do MEC, especialistas temem que apenas o incentivo financeiro não seja o suficiente para trazer os jovens de volta à escola

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(Foto: Antônio Augusto Gomes Batista) |
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Faz apenas quatro meses que Josué da Silva de Oliveira, de 19 anos, desembarcou na rodoviária do Tietê, na capital paulista. Vindo de Nova Cruz, no interior do Rio Grande do Norte, o jovem retirante deixou para trás família, amigos, e os estudos ainda por fazer. No sítio onde morava, não havia bom acesso à internet. Tampouco a escola ofereceu estrutura para as aulas online, de forma que o ano passou, e ao final, todos os alunos foram aprovados automaticamente. O que já era ruim, piorou na pandemia e, antes de completar o nono ano, ele deixou em definitivo a escola. “Perdi o interesse totalmente e aí, no outro ano, já não fui mais”, conta 

Embora lamente, Josué, não vê com grande preocupação o fato de não deixado a escola. “Não tinha nada interessante, eu não via de que jeito ia conseguir melhorar de vida”, recorda. “Chegava sempre cansado do trabalho e aproveitava muito pouco as aulas.”

O trabalho na roça começou cedo para Josué. Aos oito anos, já trabalhava como ajudante nas fábricas de farinhas de mandioca e milho da região. Com o tempo, passou a trabalhar também na lavoura para ajudar o pai. O trabalho era pesado: começava por volta das 3 horas da manhã e tinha apenas um intervalo, às 7 horas, para tomar o café e seguir até meio-dia, hora de voltar para casa, se arrumar e ir para a escola. “Muitas vezes eu me atrasava porque o patrão pedia para fazer alguma coisa, e não conseguia pegar o ônibus. Ou chegava na escola já sem cabeça para prestar atenção”, lamenta.

Josué é mais um entre milhares de adolescentes brasileiros que abandona as escolas brasileiras. De acordo com o Ministério da Educação, cerca de 480 mil adolescentes abandonam o Ensino Médio todos os anos, fenômeno agravado pela pandemia, e que deixa marcas cada vez mais profundas na vida dos jovens brasileiros.

Na tentativa de amenizar o problema, o governo federal acabou de lançar um novo programa de incentivo, o Pé de Meia, que vai destinar uma bolsa de 200 reais mensais aos estudantes de baixa renda, e ao mesmo tempo manter uma poupança onde serão depositados mil reais no início do ano letivo, e outros R$1.800 em nove parcelas. Ao final do Ensino Médio, o aluno terá esse pé de meia para pensar com mais tranquilidade na transição para o mercado de trabalho. Serão investidos R$7,1 bilhões ao ano, que devem beneficiar 2,5 milhões de estudantes de famílias de baixa renda cadastradas no Cadastro Único. 

A vontade de ajudar os pais – e, quem sabe, comprar uma moto ou um carro – fazem Josué seguir em frente. Os olhos brilham quando ele enumera a quantidade de coisas que já conseguiu comprar com o novo emprego, no salão de um bar do centro da cidade: “Minha bicicleta, meu telefone e meu tênis…”. Voltar para a escola, porém, não está em seus planos, ainda que recebesse uma bolsa ou outro incentivo financeiro. “Muita coisa me fez abandonar os estudos, não é só questão de dinheiro. mas principalmente o fato de que eu não via possibilidade de me desenvolver”. 

Embora vejam com bons olhos o novo programa do MEC, especialistas temem que apenas o incentivo financeiro não seja o suficiente para trazer os jovens de volta à escola. Durante o encerramento da Conferência Nacional da Educação, na última terça-feira, 30, o presidente Lula concordou a premissa, mas ponderou dificuldades de orçamento. “O cobertor não é tão grande: se você cobrir a cabeça, descobre o pé. Temos que fazer mágica para definir cada vez mais as prioridades”. Com o cobertor curto, contudo, é difícil esperar que o problema seja resolvido em toda sua complexidade.

Para o ex-secretário de Educação da capital paulista, Alexandre Schneider, o Pé de Meia pode sim ajudar a reestruturar a vida escolar. “Hoje, os estudantes do Ensino Médio estão numa espécie de limbo, porque já está provado que esse Novo Ensino Médio não deu certo, mas ainda não se sabe o que vai acontecer, isso é preocupante”. Mas será preciso um esforço extra, contudo, para de fato combater a evasão. “São muitos componentes que levam o jovem a sair da escola. Na maioria das vezes não é por vontade própria, mas porque precisam trabalhar, ou porque tiveram gravidez precoce…”, avalia. “Se a escola não for atrativa e acolhedora, muito dificilmente será possível reverter esse quadro”. 

O professor da Faculdade de Educação da USP, Daniel Cara, considera positiva toda iniciativa de distribuição de renda. Mas pondera que a estrutura escolar está debilitada e o trabalho dos professores não é valorizado como deveria. “A tendência até pode ser redução da evasão, mas o aluno não vai receber uma educação de qualidade”, pondera. “É preciso melhorar as condições das escolas, as condições de trabalho dos professores, estruturar, de fato, a Educação. Me preocupa que só tenha esse programa sendo elaborado para combater a evasão”

Outro receio de Cara é a intensificação da progressão contínua, uma prática que já existe hoje nas escolas brasileiras e que, na prática, acaba por incentivar a aprovação de alunos sem o devido aprendizado. “Pode começar a existir agora uma pressão muito maior, mesmo que o aluno não tenha adquirido o aprendizado”. Fernando Cássio, também professor da Faculdade de Educação da USP, compartilha da mesma angústia: “Pode existir uma pressão sobre os professores para fazer o aluno ser aprovado, ou até mesmo o professor se sentir mal por entender que, se avaliar o aluno corretamente, poderia fazê-lo ser removido do programa.”

Em entrevista a CartaCapital, o ministro Camilo Santana reconheceu que o Pé de Meia é apenas uma parte de um projeto maior de reestruturação da educação no Brasil. Mas reforçou que o ministério da Educação está em diálogo com outros ministérios para elaborar políticas que funcionem em rede, de forma a garantir uma assistência completa às crianças e jovens em idade escolar. “O Pé de Meia complementa as estratégias do MEC para ampliar o acesso e melhorar a ­qualidade de toda a educação básica, desde a creche até a conclusão do Ensino Médio.”

O advogado Ariel de Castro Alves, ex presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, também reconhece os limites da proposta. “Sem dúvidas é uma política muito importante, mas precisa estar vinculada a outras ações sociais, profissionalizantes, culturais e esportivas, além de um acompanhamento individualizado para cada aluno, com psicólogos e assistentes sociais, que por Lei todas as escolas públicas deveriam ter”.

Além de conter a evasão escolar, Castro Alves alerta ainda ser necessário priorizar os alunos mais vulneráveis, entre eles os egressos de medidas socioeducativas, os resgatados de trabalho infantil, exploração sexual e em situação de rua. “Se o governo quer evitar que a juventude ingresse no mundo do crime, precisa fazer um acompanhamento social-familiar, e dar perspectivas para além dos muros da escola, como educação em tempo integral, profissionalização e atendimento à saúde de forma humanizada no caso de dependências de drogas e doenças mentais.” 

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