Disciplinas

O mito da estiagem 
de São Paulo

A natureza nada tem a ver 
com o desabastecimento de água na Região Metropolitana da maior capital do País

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Costa do Sudeste brasileiro| seca na costa do sudeste brasileiro|
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Embora as fontes governamentais neguem, o racionamento de água em São Paulo é uma realidade. Segundo pesquisa do Datafolha divulgada em 16 de agosto, 46% dos entrevistados da capital relataram interrupção no abastecimento nos últimos 30 dias. Em outros municípios da Região Metropolitana, 37% alegaram problemas. Os gestores tentam atribuir a falta de água à natureza (El Niño, aquecimento global ou simplesmente porque choveu pouco são citados), mas as razões são fruto de um conjunto de erros de gestão – do contrário, o racionamento não seria necessário, sobretudo em uma região úmida como o Sudeste brasileiro. No texto a seguir, o professor Venturi explica por que a falta de água em São Paulo não é “culpa de São Pedro”.

A água é um dos recursos naturais mais abundantes no planeta e as quantidades existentes sobram diante da necessidade humana. Mesmo considerando apenas as águas doces continentais, 3% do total da Terra, há muito mais água do que a capacidade humana de utilizá-la. Indo além, apenas a quantidade de água que precipita anualmente só na superfície dos continentes (cerca de 110 km3) já seria capaz, se fosse captada e armazenada, de suprir toda a humanidade. Considerando a água subterrânea, o Alter do Chão, maior aquífero do mundo sob a Bacia Amazônica, armazena água suficiente (86 mil km3) para abastecer a humanidade por pelo menos três séculos, já que ele é continuamente recarregado pela infiltração de água proveniente da atmosfera e da superfície.

Os estoques de água doce são inesgotáveis, na medida em que são alimentados principalmente pelos oceanos, infinitos via evaporação e precipitação, ou seja, pelo ciclo hidrológico (veja abaixo), que depende de forças físicas as quais o homem nunca poderá interromper. Enquanto existirem, o ciclo funcionará e os estoques de água doce nos continentes serão repostos indefinidamente.

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Leia atividade didática de Geografia para o Ensino Médio baseada no tema:

Competências: Compreender a sociedade e a natureza, reconhecendo suas interações no espaço em diferentes contextos históricos e geográficos

Habilidades: Analisar de maneira crítica as interações da sociedade com o meio físico, levando em consideração aspectos geográficos; avaliar as relações entre preservação e degradação da vida no planeta nas diferentes escalas
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1) Com base nos argumentos expostos, analise o mapa sobre o acesso à água potável e explique por que a Região Amazônica, onde está a maior bacia hidrográfica e o maior aquífero do mundo (o Alter do Chão), apresenta os menores índices de acesso à água potável do País.

2) Compare o mapa de acesso à água potável nas cidades brasileiras com o mapa de acesso ao saneamento básico e estabeleça relações entre eles.

3) A responsabilização da natureza também ocorre em situações de inundações urbanas, quando se alega que “choveu muito”. Pesquise e reflita sobre as reais razões das enchentes urbanas.

4) Pense no maior número possível de ações e hábitos que um cidadão pode adotar para contribuir com o uso inteligente da água.[/bs_citem][bs_button size=”md” type=”info” value=”Leia Mais” href=”#citem_5422-8f97″ parent=”collapse_e98f-4f2c” cor=”amarelo”][/bs_col][/bs_row]

O alerta de que a água vai acabar, portanto, não tem fundamento. Obviamente que a água não se distribui equitativamente pelo planeta. Há regiões com muita água, normalmente na zona tropical, na qual a evaporação é maior, e regiões áridas, onde, por razões específicas da dinâmica climática, as taxas de evaporação são maiores do que a precipitação, gerando déficit de reposição de estoques de água doce. Esse não é o caso de São Paulo, cidade situada em uma região úmida, com elevados índices pluviométricos, em grande parte decorrente da umidade trazida do oceano pelas massas de ar (veja as imagens de satélite do Sudeste brasileiro e da costa da Namíbia, na África, nesta página).

Enquanto o Sol brilhar, a Terra girar e a Lei da Gravidade não for “revogada”, as recargas de água doce na Região Sudeste estarão garantidas, em volumes muito superiores à nossa necessidade.

Considerando apenas a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), há mananciais na parte norte da região, a (Serra da Cantareira), e em toda a parte sul, na região da Bacia do Guarapiranga, do Alto Cotia etc., além de reservatórios (represamentos artificiais) que formam um sistema de abastecimento. Além disso, São Paulo importa água de outras bacias, como a do Rio Piracicaba, e como planeja fazer com a Bacia do Rio Ribeira de Iguape.

Ocorre que, embora haja diversas fontes de abastecimento para a região, elas não estão interligadas. Trata-se de um sistema desconexo, no qual, se falta água em um reservatório por um período – como tem ocorrido com a Cantareira –, não há como compensar esse déficit com a água dos outros. Os sistemas Alto Cotia e Guarapiranga, por exemplo, estiveram, em 2014, com níveis de água superiores ao da Cantareira, que sozinha abastece cerca de 8 milhões de pessoas.

Mas não puderam “socorrer” essa demanda por não estarem interligados. Havendo um período de estiagem natural mais prolongado, como tem ocorrido na Cantareira, a retirada de água tornou-se mais intensa do que a reposição natural dos estoques, daí o porquê de suas represas estarem secas. A gestão dos recursos hídricos não foi inteligente o suficiente para construir um sistema interligado que equilibrasse demandas e estoques. Se assim o tivessem feito, jamais faltaria água em São Paulo, pois o total de água existente em torno da RMSP é mais do que suficiente para atender à demanda.

Outro fator auxiliar na compreensão da falta d’água em São Paulo refere-se às perdas, que estão entre 27% e 30% de toda a água tratada. Elas advêm, sobretudo, de vazamentos e de captações clandestinas, embora, nesse último caso, apesar da ilegalidade, não há o desperdício, não há perda de fato da água como há nos vazamentos. Alguém a está usando, só que sem pagar.

Ainda na dimensão técnica, outro aspecto que nos ajuda a compreender essa situação de escassez que algumas áreas de São Paulo estão enfrentando refere-se ao bombeamento da água dos reservatórios. A sucção do líquido atinge apenas as camadas superiores dos reservatórios, sendo o restante chamado volume morto, fora do alcance das bombas. Mais uma vez a gestão dos recursos hídricos não foi eficiente para prever que, em caso de anos anômalos de menor precipitação, haveria a necessidade de se bombearem as camadas inferiores – a previsão de anomalidades climáticas deveria ser considerada em um planejamento de recursos hídricos. A tentativa de corrigir a má gestão da água paulista chegou tarde.

Complementarmente, o reúso ganhou espaço no debate com a proposta de reservar a água potável apenas para os usos nos quais ela deve ser realmente limpa e própria para o consumo. Infelizmente, isso só ocorre no meio empresarial e comercial. A Sabesp, empresa de saneamento básico de capital misto, cujo maior acionista é o governo de São Paulo, elabora programas apenas para empresas, mas não para a população em geral, que não recebe água de reúso em seus domicílios. Assim, a mesma água potável que bebemos é a água que usamos para dar a descarga ou para regar plantas, o que torna a economia no ambiente doméstico limitada a ações como o aproveitamento da água de lavagem de roupa ou do quintal. Só resta ao cidadão exercer o seu papel usando a água com racionalidade, inteligência e parcimônia.

***

A falácia da Guerra pela água

Internacionalmente, não existem registros de conflitos por disputa de recursos hídricos, apenas algumas tensões políticas ou diplomáticas em alguns casos específicos. A maior parte das 261 bacias internacionais existentes no mundo é gerida por meio de acordos que asseguram o compartilhamento de suas águas.

É o caso do Tratado de Cooperação da Bacia Amazônica, o Tratado da Bacia do Prata, a Comissão Internacional para Proteção do Rio Danúbio (Europa), a Iniciativa da Bacia do Nilo (África), o Protocolo de Damasco, assegurando o compartilhamento das águas do Rio Eufrates (Oriente Médio), Tratado de Paz entre Israel e Jordânia acerca do compartilhamento do Rio Jordão, entre outros. O mundo já entende que uma bacia hidrográfica deve ser gerida enquanto sistema integrado, independentemente das fronteiras políticas que possa abranger. Observe que, mesmo em áreas onde o recurso hídrico é mais escasso, nunca houve a chamada guerra pela água, nem há perspectiva de que haja, já que as soluções técnicas e de planejamento estão se tornando mais eficientes e mais baratas, sobretudo se comparadas aos custos de uma guerra. Paula Duarte Lopes, em Água no Século XXI: Desafios e oportunidades, afirma: “No que diz respeito à água, a última guerra – no sentido clássico do termo – registrada teve lugar entre duas cidades-Estado na Suméria antiga (Umma e Lagash), em 2500 a.C. Não existe qualquer registro histórico de outra guerra entre entidades políticas autônomas ou explicada por motivos hídricos”.

O especialista turco em hidropolítica Dursun Yildiz converge com essa opinião ao afirmar que, “quando olhamos para os trabalhos acadêmicos, podemos ver claramente que a tese da realização da guerra da água parece quase impossível. Esse conceito é mais publicado em revistas e jornais populares”. Afirmar que a água vai acabar, como já vimos, é uma insensatez malthusiana, e atribuir conflitos a uma eventual escassez atende apenas a interesses midiáticos, políticos e ideológicos, pois não se assenta em base científica, mas a uma perspectiva fatalista que talvez tenha maior valor 
de mercado.

No Brasil, porém, a recente disputa entre os governos de São Paulo e do Rio de Janeiro reveste-se de desconhecimento técnico e de interesses políticos. Desconhecimento de que uma bacia deve ser gerida como um conjunto sistêmico, cujo potencial hídrico pode ser medido em relação à demanda e, dessa forma, ter as águas compartilhadas pelos estados. Essa disputa é também revestida de interesses políticos, pois, alimentar o discurso de que “estão roubando nossa água e não vamos permitir que isso aconteça”, tem uma forte conotação emocional que pode facilmente ser revertida em benefícios eleitorais. Não há o menor problema em compartilhar as águas da Bacia do Rio Paraíba do Sul, como já se faz há milênios em outras bacias, e como se está fazendo com o São Francisco.

***

Saiba mais:

Livros
O Uso Inteligente da Água, de Aldo Rebouças. São Paulo: Escrituras, 2004.

Uso e Gestão dos Recursos Hídricos no Brasil, de Norma Felicidade e outros. (orgs.). São Carlos: Rima, 2003.

Sites
Agência Nacional das Águas
Sabesp

* Luis Antonio Bittar Venturi é professor livre-docente do departamento de geografia da Universidade de São Paulo

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