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O financiamento científico não pode estar refém de políticas inimigas da ciência

É necessário conectar a ciência com o setor filantrópico de maneira mais estruturada, criando pontes entre o fazer científico e as demandas sociais

O financiamento científico não pode estar refém de políticas inimigas da ciência
O financiamento científico não pode estar refém de políticas inimigas da ciência
A demonstrator holds a sign that reads "Education is not for sale, it is defended" during a march in protest of the budget adjustment to public universities in Buenos Aires on April 23, 2024. Tens of thousands of Argentine university students took to the streets Tuesday to protest cuts to higher public education, research and science under budget-slashing new President Javier Milei. (Photo by Luis ROBAYO / AFP)
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A crise climática, as desigualdades sociais e os desafios globais de sustentabilidade demandam uma ciência mais transformadora, capaz de gerar impactos concretos na sociedade. Os mecanismos tradicionais de financiamento à ciência, entretanto, ainda estão fortemente enraizados em modelos disciplinares e competitivos, pouco propícios à  colaboração transdisciplinar e à experimentação necessárias para enfrentar esses desafios.

Nos EUA, a filantropia tem desempenhado um papel significativo na adaptação do financiamento científico para essa nova realidade. O contexto lá é também marcado por algo que a Nature destacou em um recente artigo: a incerteza gerada por congelamentos de financiamento impacta milhares de pesquisadores e instituições, criando um cenário de turbulência nas universidades e agências federais a partir das primeiras ações do novo governo Trump. Além disso, milhões de beneficiários de programas financiados pelos EUA  em todo o mundo foram deixados sem suporte, afetando o ecossistema global de pesquisa.  Um ataque à ciência em qualquer lugar é uma ameaça à ciência como um todo, por isso algumas organizações científicas internacionais começaram a reagir. Para que essa reação esteja à altura, são necessários sistemas de financiamento mais resilientes e flexíveis.

Um exemplo de articulação nesse sentido é a Vision for American Science & Technology  (VAST). A plataforma propõe um novo paradigma de apoio à ciência, impulsionando investimentos privados e estruturando redes de colaboração para garantir que a pesquisa não fique refém de mudanças governamentais abruptas.

A contemporaneidade demanda uma ciência que não apenas gere conhecimento, mas que contribua ativamente para a resolução de problemas globais. Nesse sentido, a UNESCO declarou esta como a década das ciências para o desenvolvimento sustentável. Essa abordagem exige um modelo de financiamento que vá além dos moldes tradicionais, incorporando elementos de pesquisa aplicada e coprodução de conhecimento com diferentes atores sociais.

No início deste mês, a UNESCO e o Conselho Internacional de Ciência (ISC) convocaram membros da comunidade internacional para o evento “Ciência Transformadora para o Desenvolvimento Sustentável”, que reuniu em Paris especialistas globais para discutir como a ciência pode enfrentar melhor os desafios da sustentabilidade. Durante dois dias de intensos debates, ficou claro que o modelo atual de financiamento da ciência precisa evoluir para apoiar pesquisas transdisciplinares e orientadas por missão, promovendo a coprodução do conhecimento – e que a filantropia tem um papel importante a cumprir.

Foram debatidas experiências de financiamento à ciência transdisciplinar e transformadora.  Entre os destaques, esteve o trabalho do Research on Research Institute (RoRI), que, por meio do projeto UNDISCIPLINED, investiga como agências de fomento podem estruturar editais que incentivem a transdisciplinaridade e maximizem o impacto social da ciência. O estudo destaca a necessidade de modelos flexíveis de financiamento, avaliação por painéis diversos e maior suporte às parcerias entre academia e sociedade.

Diante desse contexto, abre-se uma janela de oportunidade para a filantropia desempenhar um papel estratégico na transformação do financiamento científico. É necessário conectar a ciência com o setor filantrópico de maneira mais estruturada, criando pontes entre o fazer científico e as demandas sociais. Assim surgem oportunidades de estimular a ciência transdisciplinar e em coprodução com filantropias científicas tradicionais, ao passo que também há um campo fértil para articular filantropias que atuam historicamente em outros temas, como sistemas alimentares, inclusão produtiva, ação climática, e muitos outros, para  que financiem essa ciência transformadora.

A abordagem sugerida por diversas organizações, incluindo a Science Philanthropy Alliance, enfatiza que a filantropia pode apoiar iniciativas que combinam rigor científico com impacto social. Isso inclui desde a criação de fundos dedicados à ciência orientada por missões até o suporte a programas de capacitação que formem pesquisadores para atuar em contextos interdisciplinares. Se queremos que a ciência cumpra seu papel fundamental na construção de um futuro sustentável, seu financiamento precisa se alinhar a esse propósito. O evento da UNESCO e do ISC em Paris reforçou essa mensagem: o modelo atual de financiamento científico precisa evoluir para fomentar a transdisciplinaridade, a colaboração global e a inovação social.

Para isso, é essencial que espaços globais sejam utilizados como plataformas de articulação, promovendo diálogos entre diferentes atores e mobilizando novos modelos de financiamento científico. O envolvimento da filantropia nessa agenda pode ser decisivo para consolidar um ecossistema de apoio à ciência transformadora, que integre conhecimento, impacto social e inovação. Somente com essa convergência poderemos viabilizar soluções sustentáveis e de longo prazo para os desafios que enfrentamos.

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