Educação

“O desastre em Mariana se soma a uma tragédia de três séculos”

Para ambientalista Apolo Lisboa, rompimento de barragem é mais um episódio que evidencia o descaso com região mineira que sofre prejuízos ambientais e sociais desde o Ciclo do Ouro

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A catástrofe ambiental causada pelo mar de lama que tomou Mariana (MG) após o rompimento da barragem da mineradora Samarco é o estopim de um descaso histórico dos governantes e empresas com a região.

É o que alerta o médico e ambientalista Apolo Heringer Lisboa, idealizador do Projeto Manuelzão, que mobiliza a sociedade para a recuperação hidro-ambiental do Rio das Velhas (MG). Para o especialista, professor da UFMG e doutor em Educação, os prejuízos da mineração em Minas Gerais são perceptíveis e se acumulam desde o final do século XVII quando iniciou-se o chamado Ciclo do Ouro.

A região do vale do rio Doce, por exemplo, vem sendo desde então palco de inúmeras tragédias: exterminação de tribos indígenas inteiras, desmatamento desenfreado, erosão do solo, contaminação da água por metais pesados, entre outras violações humanas e ambientais. Em entrevista a Carta Educação, o ambientalista falou sobre os principais danos e os possíveis caminhos para a recuperação da região.

O ambientalista apolo lisboa

Carta Educação: Como o senhor analisa o desastre ambiental ocorrido este ano em Mariana (MG), consequente do rompimento da barragem de Fundão?

Apolo Lisboa: Muitas tragédias ambientais acontecem por 10 anos, um século e não são percebidas como tais. Mas quando acontece assim, aparentemente de uma hora para outra, parecem marcar, preocupar mais. É mais ou menos igual a quando há a queda de um avião, onde morrem 300 pessoas de uma vez e isso vira notícia internacional. Mas se morrem 600 pessoas em um feriado prolongado às vezes nem chega ao noticiário local. Porque existe esse fator da comoção e os meios de comunicação reverberam mais quando as coisas ocorrem de forma abrupta. Mas, na realidade, a tragédia do rio Doce começou no final do século XVIII com o declínio do Ciclo do Ouro em Minas Gerais. O vale do rio Doce até então estava preservado pelo governo português como uma defesa militar contra uma possível invasão estrangeira a Ouro Preto. À medida que foi liberada sua conquista, como uma saída para o mar inclusive, o rio Doce primeiro foi palco do holocausto dos índios botocudos que foram perseguidos e eliminados. Logo em seguida, vieram as queimadas e o desmatamento para plantar café, capim, criar gado, fazer carvão e outros tipos de agricultura. Tudo isso provocou uma grande erosão no vale do rio Doce, tudo isso foi uma grande tragédia. Até maior do que esta última.

CE: Em que sentido?

AL: Essa tragédia de agora – que eu considero de dimensão internacional – não é maior que as demais, só que ela repercutiu mais devido ao fato de ter acontecido de forma abrupta. O desastre em Mariana se soma a uma tragédia que já leva três séculos. Porque o rio Doce não estava uma maravilha quando aconteceu isso, estava todo assoreado, a água estava com uma péssima qualidade, cheia de esgoto doméstico e metais pesados. Porque quando se desmata e faz uma agricultura errada há uma erosão muito violenta e a terra desce toda para dentro do rio. Ele estava cheio de metais pesados como arsênio, chumbo, manganês, mercúrio, ferro. É uma prova que o rio pode ser veículo de vida e de morte. O Rio Doce está em estado grave, só que tem centenas de afluentes trazendo água de melhor qualidade, não boa, mas de melhor qualidade que vão trazer futuramente os peixes, a vida. Agora hoje o povo não pode beber essa água e fauna local também não. Imagina todos os animais dessa região sem água para beber. Essa lama é muito pesada e ela se depositou no fundo do rio e vai continuar correndo rio abaixo por muito tempo.

CE: Podemos dizer que a relação de dependência de Minas Gerais com a mineração deixou prejuízos históricos?

AL: Têm várias narrativas do passado sobre a extração de ouro, por exemplo, em Ouro Preto, que mostram isso. O Conde de Assumar escreveu, em 1717, que os negros faziam buracos muito profundos e se metiam dentro deles para procurar ouro, o que era muito arriscado porque às vezes a terra cedia e todos eles eram enterrados vivos. Em 1824, um barão relata Mariana como um vale pobre e árido por onde corre o rio São José, turvo pela lavação do ouro, uma visão triste de um vale outrora tão rico. Você tem outros episódios também, desabamentos que mataram centenas de escravos, mais recentemente tem o caso do Rio Pomba, em 2008, cujo rompimento da barragem levou muita lama para toda a bacia do rio Paraíba do Sul e agora, 5 de novembro, esse caso de Mariana. Esses são os acidentes maiores, mas a região toda está esburacada por causa da mineração desde o final do século XVII e todas as cidades muito dependentes da mineração em termos de renda.

CE: E como isto afeta a população?

AL: Estas cidades não tem estrutura até hoje. A população é pobre, doente. O ouro e o ferro não levaram progresso para a região mesmo porque as mineradoras não pagam o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) por causa da Lei Kandir [que isentou do imposto produtos primários destinados a exportação]. Então o dinheiro evapora da cidade e só fica o prejuízo porque acaba com a água. A água está muito ligada ao minério de ferro, você acaba com os lençóis freáticos porque bombeia a água para fora da jazida para minerar no seco com as máquinas e tratores, às vezes com 300 metros de fundura em uma área enorme, um buraco de quatro, cinco quadras. Então em toda a região, as nascentes secam, é um impacto muito grande, e ainda há os minerodutos que levam o minério em grandes canos com mais de um metro de diâmetro, que usam uma quantidade gigantesca de água, algo que daria para abastecer uma capital como Belo Horizonte.

Lama em Mariana
Crédito: Rogério Alves/TV Senado

CE: O que aconteceu em Mariana é um alerta para repensarmos nosso modelo de extração?

AL: A tragédia do rio Doce é o próprio sistema econômico atual que não é sustentável. Hoje, o vale do rio Doce é o vale do aço, do eucalipto, da celulose, do carvão vegetal, do minério de ferro, que são atividades econômicas que não respeitam o meio ambiente. No licenciamento ambiental aqui no Brasil predomina a ideia de que a prioridade é o crescimento econômico, a produção, gerar emprego e renda. Nunca a prioridade é preservar o meio ambiente e fazer a economia se adaptar à vida dos ecossistemas. Se tivéssemos uma visão ecossistêmica da vida, da política, da economia veríamos que a única saída é “ecologizar” a economia, o que significa não destruir a terra por causa das atividades econômicas. Você deveria agregar à produção econômica valores ecológicos, que conta com um desenvolvimento científico, tecnológico de ponta. Mas aí há o choque com o interesse das empresas que querem lucro rápido, barato. Além disso, há a complexidade dos governos, onde os políticos, em sua grande maioria, são eleitos com o dinheiro que vem das indústrias e, sobretudo, das mineradoras. Logo, eles não vão defender o Estado e a sociedade, pois estão subordinados a outros interesses.

CE: O senhor consegue vislumbrar algum caminho para a recuperação do rio Doce?

AL: O que é fundamental para a recuperação de uma bacia hidrográfica é resolver o problema do solo. Porque ele não é renovável. Todo solo que sai com a chuva, porque houve desmatamento, porque houve agricultura ou criação de gado de forma imprópria, toda aquela terra que desce para dentro do rio não volta mais, é irreversível. O que se pode tentar fazer é recarregar os lençóis freáticos para evitar a seca subterrânea. Então você teria que retardar o escoamento da água da chuva por meio de obstáculos. Pode ser pequenas cestas com bambu, pedra, madeira para fazer poças d’água do alto dos morros para baixo. Aí a água vai empoçando, a terra para de descer porque fica parada nesses pontos e dali alguns dias aquele infiltrado sobe. Então você acaba compensando com um modelo artificial a função da vegetação que foi destruída. E, claro, é preciso fazer plantio também e desmatamento zero.

CE: Era possível prever e evitar esse desastre em Mariana?

AL: As empresas envolvidas nessa tragédia são umas das mais ricas do mundo na mineração. E não tem geólogos, engenheiros – os melhores do mundo – para acompanhar esse acidente? Não tem um plano de evacuação da população, um plano de contenção dessa lama? E outra coisa, você pode minerar a seco, você pode fragmentar a rocha e tirar o minério de ferro por meio de imãs. Por que eles não fizeram a mineração a seco se tem essa tecnologia já? Outra, se você tem uma barragem de rejeito, você tem que imaginar que vai ter um peso maior que pode haver um fenômeno de liquefação. Por isso que quando você constrói uma barragem de rejeito você tem que prever pequenos tremores de terra. Aqui foi tudo feito sem cuidado, com um desleixo completo.

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