Educação

No Pantanal, Escolas das Águas se adaptam ao regime das cheias

Com calendário e currículo próprios, unidades se organizam de acordo com inundação e valorizam tradição pantaneira

No Pantanal, Escolas das Águas se adaptam ao regime das cheias
No Pantanal, Escolas das Águas se adaptam ao regime das cheias
Escola Polo São Lourenço no período de cheia|Escola Polo São Lourenço no período de vazante. Foto: Patricia Zerlotti|Alunos da unidade do Paraguai Mirim. Foto: Arquivo Escolas das Águas ||
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Uma das maiores extensões alagadas do planeta, o Pantanal vive sob o desígnio das águas. Se na estação seca o horizonte ganha campos, bancos de areia, ilhas e canais, quando as chuvas chegam as áreas mais baixas rapidamente se inundam, metamorfoseando a região em um “grande mar” e isolando muitas comunidades.

Nesse cenário, tarefas cotidianas como ir à escola ganham obstáculos hercúleos devido às dificuldades de locomoção. Até pouco tempo atrás, tais condições impediam que filhos de agricultores, pescadores, assentados, peões, pequenos proprietários de terra e de famílias ribeirinhas pudessem estudar.

O quadro mudou depois da fundação de um tipo diferente de escola – as Escolas das Águas. Na zona rural do município de Corumbá, localizado no Mato Grosso do Sul, quase na fronteira com a Bolívia, já são cerca de 5 unidades polos e 6 extensões funcionando nesse esquema.

Diferentemente das Escolas da Terra, situadas em terrenos mais altos e secos e sob o mesmo funcionamento das escolas urbanas, as Escolas das Águas estão hospedadas em regiões mais baixas e, portanto, sob a influência dos rios Paraguai e Taquari.

Seus alunos seguem um calendário escolar diferente. Como o acesso nessa região é difícil, podendo levar até 6 horas de barco para algumas famílias, os alunos estudam em um regime de internato: a maior parte deles permanece na escola por todo o bimestre. Alguns estudantes permanecem na escola durante a semana, retornando para casa nos finais de semana, e outros uma vez por quinzena.

“A divisão entre escolas da Terra e das Águas ocorreu em 1997. Isso facilitou a gestão das escolas tanto do ponto de vista administrativo quanto pedagógico e agora, com a nova reestruturação, dividida em cinco escolas polos, elas ganham ainda mais autonomia”, explica Patrícia Zerlotti, coordenadora de projetos na ECOA Ecologia e Ação, ONG que desenvolve ações nas comunidades onde estão algumas das escolas.

Escola Polo São Lourenço no período de vazante. Foto: Patricia Zerlotti Escola Polo São Lourenço no período de vazante. Foto: Patricia Zerlotti

O mesmo vale para os professores, que também passam a morar nas próprias unidades educacionais. “Exceto aqueles professores que são da própria comunidade e possuem as suas residências, o restante reside na cidade de Corumbá e ficam alojados nas escolas, retornando para a cidade no final de cada bimestre e tendo de uma semana a 10 dias de recesso”, explica Patrícia. Neste período, lançam as notas, participam de formações continuadas e recebem orientações pedagógicas.

Para atender estudantes do Ensino Fundamental (apenas uma unidade oferece Educação Infantil e desde 2015), as Escolas das Águas adaptaram não somente o cronograma às peculiaridades locais, mas também o currículo, que incorporou a cultura ribeirinha. “Os temas mais específicos são tratados por meio do desenvolvimento de projetos pedagógicos. Todos os anos são desenvolvidas atividades que resgatam e valorizam a cultura e o modo de viver local”, conta Patrícia.

No segundo semestre de 2015, por exemplo, cada extensão escolar desenvolveu um projeto para pesquisar um conhecimento tradicional de sua comunidade, envolvendo professores, alunos e moradores. “Em uma das unidades, na Escola de São Lourenço, os alunos trabalharam como é feito o artesanato com as folha do aguapé/camalote [planta aquática muito encontrada no Pantanal]. Os alunos entrevistaram uma senhora que tem esse conhecimento e levaram para escola”, explica Patricia. A taxidermia da piranha, o conhecimento sobre a variedade de peixes e a identificação e uso de plantas medicinais também apareceram como saberes.

Alunos da unidade do Paraguai Mirim. Foto: Arquivo Escolas das Águas Alunos da unidade do Paraguai Mirim. Foto: Arquivo Escolas das Águas

Na região do rio Taquari, onde as escolas se encontram mais afastadas da água, os conhecimentos tradicionais identificados foram, por exemplo, a construção do carro de boi, muito usado na região antigamente, a doma de cavalo, além de histórias e lendas existentes nas comunidades.

“Agora o desafio é que os saberes tradicionais dos alunos permeiam o currículo escolar durante o período letivo e não somente nos projetos. Mas já vemos uma diferença. Os professores estão compreendendo que estão inseridos em uma cultura diferenciada e que a escola deve respeitar os costumes, ensinar o currículo escolar sem impor a cultura dominante dos centros urbanos”, diz Patrícia.

A pesquisadora acrescenta que as comunidades pantaneiras são milenares e possuem conhecimentos ambientais que, aliados ao conhecimento científico, podem gerar novos saberes que são de extrema importância para a conservação do ecossistema. “Esse conhecimento não pode ser perdido e a escola não tem só a função de ensinar a ler, escrever e somar como era antigamente. Ela deve formar cidadãos que respeitem as diferenças e valorizem suas origens”, conclui.

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