Educação

‘Não sou um caso isolado’: professora negra da USP questiona anulação de concurso e fala em perseguição

Conselho Universitário anulou a aprovação de Érica Bispo após denúncias de suposta proximidade com a banca; entidades estudantis e coletivos negros defendem manutenção

‘Não sou um caso isolado’: professora negra da USP questiona anulação de concurso e fala em perseguição
‘Não sou um caso isolado’: professora negra da USP questiona anulação de concurso e fala em perseguição
A professora Érica Bispo. Foto: Renner Boldrino
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A professora Érica Bispo, que conquistou o primeiro lugar em um concurso para docente de literaturas africanas e portuguesas na USP, viu sua vitória ser anulada quase dois anos após o início do processo seletivo. A decisão do Conselho Universitário, tomada após denúncias de suposta proximidade entre a candidata e integrantes da banca, trouxe à tona tensões raciais e institucionais estruturais na universidade.

Érica compartilhou a frustração com o desfecho do caso e o desgaste acumulado ao longo do processo. “Eu me sinto esgotada e frustrada emocionalmente. Prestar um concurso para o cargo mais alto da USP não é algo simples, é uma maratona que, por diversas vezes, te faz questionar sua capacidade”, disse a CartaCapital. “Mereço meu pedaço de pão pelos alicerces que meus antepassados colocaram no mundo”, acrescentou, citando o poema Confiança, do angolano Agostinho Neto.

Das 15 candidatas inscritas, seis assinaram duas denúncias contra Érica Bispo, alegando que ela seria “amiga íntima” de integrantes da banca avaliadora. Uma das peças chegou ao Ministério Público de São Paulo e outra à Procuradoria-Geral da USP.

O parecer acolhido pelo Conselho – formado majoritariamente por professores brancos – sustentou que o desempenho da candidata teria sido favorecido por “relações de proximidade” com duas professoras da banca, baseando-se em fotos de eventos acadêmicos publicadas nas redes sociais. Segundo o texto, haveria “contexto suficiente para se reconhecer a afetuosidade entre a candidata indicada e as professoras”.

Nas redes, Érica ressaltou ser a única candidata preta a realizar as provas. Outros dois concorrentes autodeclarados negros se inscreveram, mas não compareceram. Ela afirma não ter tido direito à ampla defesa no processo administrativo, pois o parecer técnico elaborado por seus advogados não teria sido incluído antes da decisão final do Conselho.

Com a anulação, todo o concurso precisará ser refeito e um novo processo seletivo já foi aberto. Apesar de receber mensagens de apoio para tentar novamente, Érica diz sentir-se sem fôlego para recomeçar.

‘Se havia suspeita sobre a banca, isso deveria ter sido questionado antes’

Atualmente, a disciplina literaturas africanas e portuguesas é ministrada por três docentes, todos brancos. Dados do Anuário Geral da USP revelam que, entre mais de cinco mil professores, apenas 136 se declaram pretos, pardos ou indígenas.

O edital de vaga única foi publicado no Diário Oficial em 26 de dezembro de 2023, e a realização da primeira e da segunda fases ocorreu em junho do ano passado.

“É uma perseguição, e não sou um caso isolado”, diz Érica. “Se havia suspeita sobre a banca, isso deveria ter sido questionado antes das provas, não depois.”

Apenas há dois anos o regimento interno da USP aprovou as cotas raciais para concursos, e de forma restrita: a regra prevê reserva de vagas apenas quando há três ou mais cargos ofertados. Diferentemente das universidades federais, que reúnem os concursos e garantem que um terço das contratações seja destinado a candidatos PPI (pretos, pardos e indígenas), a USP costuma abrir certames com apenas uma vaga. O que, na prática, esvazia o alcance da política.

“Isso desfavorece a presença de pessoas negras em cargos de poder”, critica Érica. “Apesar do aumento do alunado racializado após a Lei de Cotas, há ainda uma estrutura de perseguição sistêmica e burocrática, que prefere conservar o racismo estrutural de diversas formas.”

Em agosto, a Defensoria Pública de São Paulo ajuizou uma ação que contesta os processos de entrada de professores PPI na USP. O estudo que embasou o processo, realizado pela Rede Liberdade e pela ONG Ação Educativa, mostra que, entre 2022 e 2025, a proporção de professores negros na universidade cresceu apenas de 2,64% para 3,96%.

Entidades estudantis e coletivos negros manifestaram apoio à professora. Em nota, o Diretório Central dos Estudantes, o Centro Acadêmico de Letras e a coalizão dos coletivos negros da USP defenderam a manutenção do concurso.

“A falta de professores negros afeta os estudantes que desejam seguir carreira acadêmica, por exemplo. Se a nossa referência são majoritariamente homens brancos enriquecidos, a sensação que temos é de estranhamento, como se essa fosse uma posição que não nos pertence”, reagiu Rosa Baptista, diretora do DCE Livre da USP. “A anulação do concurso da professora Érica só exemplifica o poder da branquitude contra nossos corpos.”

Em nota publicada nas redes sociais, a FFLCH confirmou a reabertura do concurso e informou que as inscrições estão em andamento. “Sendo uma decisão do Conselho Universitário, a FFLCH não tem como reverter”, diz o comunicado. CartaCapital procurou o coletivo de docentes negros na USP, mas ainda não obteve resposta.

(Sob supervisão de Thais Reis Oliveira)

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