Educação

O futebol feminino na barreira

Precariedade, ausência de apoio oficial e cultura machista ainda são entraves ao futebol feminino

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Disputando a bola com os meninos na rua desde a infância, Vitória Paz, de 18 anos, já cansou de ouvir que futebol não é coisa de menina, que lugar de mulher é na cozinha ou que garota jogando futebol é coisa de “sapatão”. Natural de Ipubi, cidade pernambucana de 23 mil habitantes, ela emigrou para São Paulo há quatro anos, em busca do sonho de se tornar jogadora profissional. Há pouco mais de dois anos, Vitória é meio-atacante no time do Juventus, sediado no bairro da Mooca, zona leste da capital.

Torcedora do São Paulo Futebol Clube, a garota, porém, não pode dedicar todo o seu tempo e a sua energia ao sonho. Para se sustentar, dá expediente das 7 às 17 horas como auxiliar administrativa e duas vezes por semana sai mais cedo do trabalho para treinar – o trajeto de sua casa, no bairro de São Mateus, até o clube leva duas horas, delineadas para mais ou para menos a depender do humor do trânsito paulistano. À noite, faz o Ensino Médio em uma escola estadual. A análise de Vitória sobre as condições das mulheres boleiras é fria, objetiva e traça um retrato distante do êxito: “O futebol feminino não é apoiado no Brasil. Há poucos times femininos e, quando encontro algum, dificilmente tem boa estrutura. Alguns são bons na parte de treinamento, mas benefício para a jogadora, nada. É muito difícil de encontrar”.

Mesmo no Juventus, onde ela joga, não há equipes profissionais de futebol feminino há ao menos três anos – o time que ela e suas colegas defendem é ligado ao departamento de esporte amador do clube. O que existe é uma escola de futebol feminino, com meninas entre 14 e 18 anos. A situação não é muito diferente da encontrada em times maiores em todo o Brasil. A falta de estrutura, de apoio e de profissionalismo é entrave comumente citado por jogadoras e pessoas ligadas à modalidade. Em via de regra, há pouco ou nenhum dinheiro investido na categoria. Além disso, é comum que as jogadoras não recebam salários fixos e não tenham carteira assinada.

Uma análise mais ampla da trajetória do futebol feminino no Brasil ajuda a explicar por que as mulheres ainda lutam por direitos e visibilidade. Apesar de existirem registros de partidas entre equipes femininas desde 1920, as mulheres eram proibidas de jogar futebol profissionalmente durante o Estado Novo (1937-1945) e o Regime Militar (1964-1988). No governo de Getúlio Vargas foi prolatado o Decreto 3.199, responsável por regulamentar a prática esportiva no País e por proibir o engajamento em “desportos incompatíveis com as condições de sua natureza” para mulheres. Em 1965, já durante o período militar, o decreto foi regulamentado, proibindo as mulheres de jogar futebol de campo, de salão e de praia, além de praticar outros esportes, como polo aquático, polo, rúgbi, lutas, halterofilismo e beisebol.

“Isso não quer dizer que elas não jogavam”, pondera Osmar Moreira de Souza Júnior, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Em 1950, por exemplo, ele diz, existiam times femininos em Minas Gerais capazes de encher estádios com público interessado na prática. A lei, porém, só foi revogada em 1979, com a retomada do processo de redemocratização brasileira. A primeira seleção brasileira feminina organizou-se em 1988, e a primeira participação em Copas do Mundo ocorreu em 1991. A modalidade firmou-se a partir da década de 1990, ainda enfrentando obstáculos, como a tentativa de erotização das jogadoras no Campeonato Paulista de 1997, cujo critério de seleção das atletas levava em conta os atributos físicos, em detrimento de aspectos técnicos e objetivos, como o potencial futebolístico.

Além da falta de investimento, estrutura e apoio, as meninas que jogam bola atualmente ainda precisam enfrentar o preconceito, o machismo e a homofobia. “Não sei se pode falar aqui, mas já me chamaram de ‘maria macho’”, conta Bárbara Ferreira, 16 anos, atacante também do Juventus. Vitória acrescenta: “Eu estava jogando e só tinha eu de mulher. Fui bater um lateral e um cara gritou: ‘Sapatona’. Fechei os olhos, não ia chorar. Bati e continuei jogando. Não ia dar esse gostinho para eles”. Quando aplicam uma jogada bonita, como um “chapéu” em um jogador adversário, os outros fazem disso motivo de chacota e minimizam o feito. “Falam assim: ‘Poxa, tomou de uma menina, de uma menina!’”, contam.

Para Osmar Moreira de Souza Júnior, autor de uma tese de doutorado na Unicamp sobre futebol feminino, não se pode dizer que exista hoje, no Brasil, um circuito profissional de futebol jogado por mulheres. “A profissão delas é legalizada, mas esse direito não é colocado em prática”, afirma o hoje professor do Departamento de Educação Física da UFSCar. Segundo ele, muitos clubes ainda vinculam o futebol feminino ao esporte amador, oferecendo apenas ajudas de custo ou bolsas de estudo.

Mesmo quando a estrutura oferecida é excepcional, as atletas ainda encontram dificuldades. Osmar Moreira analisou três times femininos paulistas durante seu doutorado. Um deles, com menor estrutura e expressão, não oferecia salário nenhum. O outro, intermediário, pagava entre 400 e 1 mil reais mensais para as atletas. O último, na época o clube de maior expressão no circuito feminino, pagava entre 450 e 5 mil reais para as jogadoras. Nenhum deles, porém, registrava as atletas em carteira de trabalho.

Jogadora de futebol

Ex-jogadora e supervisora do clube Iranduba da Amazônia, Samantha Araújo de Almeida, 30 anos, também relata dificuldades para treinar e manter um time de futebol feminino no Brasil. Na equipe, representante do estado do Amazonas na Copa do Brasil em 2012 e 2014, muitas jogadoras trabalham o dia inteiro em fábricas no Polo Industrial de Manaus antes de irem para os treinos.

“Tem todo um desgaste na questão da qualidade, porque elas trabalham 12 horas sentadas e chegam cansadas por causa da carga horária do serviço”, lembra Samantha, que, na época em que atuou na agremiação, recebia 300 reais como pagamento. O dinheiro, conta, era uma ajuda para o vale-transporte ou para alguma compra pessoal. “Para você ver como no nível profissional ainda não podemos nem falar em salário. As meninas jogam porque gostam mesmo, já que recebem só uma ajudazinha.” Apesar do destaque regional alcançado, o Iranduba também sofre para conseguir patrocínio. No ano passado, sem estádio para treinar, foi eliminado na primeira fase da competição.

Autora de 1.574  gols ao longo da carreira – guardadas as diferenças e proporções, Pelé anotou 1.152 –, a ex-jogadora da Seleção Marileia dos Santos, conhecida como Michael Jackson, hoje coordenadora de futebol profissional feminino no Ministério do Esporte, é taxativa quando perguntada sobre uma possível relação entre salários dos jogadores de futebol masculino e os das mulheres: “Não tem comparação. Não dá nem 1%”.

A falta de seriedade e de investimento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) na categoria é apontada como entrave para o desenvolvimento e a profissionalização da modalidade. O Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino, por exemplo, realizado no ano passado, foi viabilizado com participação do Ministério do Esporte e da Caixa Econômica Federal, responsável por injetar 10 milhões para financiar a realização do torneio, o primeiro Brasileirão feminino em uma década. “A CBF deu a chancela do (termo Campeonato) Brasileiro, mas não pôs nem 1 real”, afirma Michael Jackson.

Foi também o Ministério, e não a Confederação, o responsável por bancar a participação de dois times brasileiros na Copa Libertadores da América de futebol feminino, realizada no ano passado, em Foz do Iguaçu, em parceria com a Confederação Sul-Americana de Futebol. Procurada, a assessoria da CBF não respondeu aos questionamentos da reportagem até a conclusão da edição.

A despeito de tantos problemas e dificuldades, as mulheres que vestiram a camisa da Seleção Brasileira na última década conseguiram notórias conquistas. Em 2007, o time foi vice-campeão mundial, perdendo o título para a Alemanha. Marta, eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo e maior expoente do futebol feminino brasileiro na história, foi a artilheira daquele campeonato. No mesmo ano, o Brasil venceu os EUA e conquistou o ouro nos Jogos Pan-Americanos. As jogadoras também levaram duas medalhas de prata nas Olimpíadas de 2004 e 2008. No último Mundial, em 2011, porém, as atletas não tiveram o mesmo desempenho e saíram ainda nas quartas de final dos jogos.

A falta de prioridade é um dos fatores aos quais se credita esse resultado. A jornalista Lu Castro, que acompanhou a Seleção feminina em 2011, conta que antes de ir para o Mundial as jogadoras ficaram hospedadas fora da Granja Comary, local de concentração e treinamento das seleções de futebol no Rio de Janeiro – o espaço foi oferecido para a Seleção masculina sub-15. “Toda a prioridade é dada para o futebol masculino”, critica. “Na época do Santos, o (técnico) Wanderlei Luxemburgo reclamou que as meninas estavam estragando o gramado que os jogadores iriam usar”, ela conta.

O time feminino do clube santista, batizado de Sereias da Vila, chegou a contar com Marta no elenco e foi o de maior expressão na modalidade nos últimos anos. Em 2012, porém, o clube fechou as portas para o futebol feminino, alegando aumento dos gastos com o time masculino e falta de interesse da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). “Acabou com um time que era considerado o melhor do Brasil”, lamenta Modesto Roma Júnior, que participou da criação das Sereias e hoje treina a equipe de futebol feminino Vitória de Santo Antão, na cidade homônima em Pernambuco.

Para os próximos torneios, na Copa do Mundo, em 2015 e nos Jogos Olímpicos, em 2016, as perspectivas tampouco são animadoras. “O Brasil sempre esteve entre as melhores seleções do mundo apenas porque há atletas aqui que gostam da modalidade e defendem o nosso país com o coração. Porque, se fosse pela estrutura oferecida, seria o penúltimo”, lamenta Michael Jackson.
A ex-jogadora da Seleção, porém, ainda acredita em vitórias nas próximas competições mundiais. “O Brasil possui a vantagem de ter muitas meninas boas de bola. Nós ainda podemos ganhar uma medalha em 2015 e na Olimpíada de 2016, basta começar a trabalhar hoje.”

*Publicado originalmente em Carta Fundamental

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