Educação

Muniz Sodré: ‘A morte de Mãe Bernadete é tão escandalosa quanto a de Marielle’

A CartaCapital, o pensador baiano trata das últimas eleições e do atual cenário do racismo, da política e da Educação no País

Foto: Reprodução
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Com mais de quarenta livros publicados e reconhecido como um dos maiores intelectuais do País, Muniz Sodré é categórico: o negro é visto como cidadão de segunda classe, ainda que ascenda socialmente.

“O racismo é um enigma. Ao mesmo tempo que é um mal-estar universal, um mal-estar civilizatório, é particular também”, diz o pensador, que lança O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional.

Convidado também a refletir sobre os oito primeiros meses do governo do presidente Lula, destaca, dentre outras coisas, a atuação do ministro da Fazenda .“Está marcando gols, inclusive nas negociações com essa choldra perigosa que dirige a Câmara”. Faz ressalvas, contudo, à performance do ministro da Educação, Camilo Santana: “Ainda não disse a que veio.”

Na conversa – que durou mais de uma hora e foi marcada também por boas risadas – Muniz Sodré falou ainda do escândalo das joias que paira sobre o ex- presidente Jair Bolsonaro e integrantes das Forças Armadas.

Candomblecista e Oba Aressá no terreiro Axé Opô Afonjá, um dos mais antigos e tradicionais de Salvador, o pensador baiano relembra dos ensinamentos de Bimba, seu mestre de capoeira: “Malandro demais se atrapalha”.

Confira a seguir.

CartaCapital: No livro O fascismo da cor, o senhor diz que o fim da escravidão no Brasil deu lugar a uma “forma social escravista”. O que vem a ser isso?

Muniz Sodré: Com a Lei Áurea, aboliu-se a escravatura, mas não se aboliu o racismo. Com isso, deu-se início a um racismo não segregacionista em termos legais, mas um racismo de dominação. Um racismo que entra na cabeça do branco mesmo que ele não tenha escravos, mesmo que ele não esteja na presença do negro, mesmo que ele não precise gritar injúrias racistas, mas está ali, no imaginário.

É um modo de vida, no qual o negro é visto como um cidadão de segunda classe. Em que não há nada que o negro possa fazer, mesmo que ele enriqueça, que ele seja muito valorizado em determinado momento, como um grande artista, um grande cantor, um grande compositor, mas no contato intersubjetivo e pessoal, as coisas mudam. Mudam porque está introjetado na cabeça, desde que nascemos, que o negro é um ser humano inferiorizado.

Aprendemos isso na família e nas instituições que organizam a sociedade. O racismo é um enigma. Ao mesmo tempo que é um mal-estar universal, um mal-estar civilizatório, é particular também. Ele tem particularidades brasileiras.

O País não pode deixar de reconhecer que a vitória do Lula é um fenômeno de salvação nacional, de salvação moral e ética

CC: Qual leitura o senhor faz do assassinato de Mãe Bernadete, ialorixá e líder quilombola, morta na semana passada com mais de 20 tiros?

MS: Mãe Bernadete não foi ameaçada e assassinada porque era mãe de santo. Ela foi ameaçada e assassinada porque era líder de uma luta fundiária. Ela está na linha de pessoas como o Chico Mendes, como a Dorothy Stang, como o Bruno [Pereira] e o Dom [Phillips], e muitos outros ativistas que foram assassinados, o que também tem acontecido com indígenas que lutam pelo direito à terra. Ela foi assassinada porque era uma mulher combativa, tinha uma força, uma liderança em vários setores sociais. Além disso, as terras do quilombo Pitanga dos Palmares são altamente valiosas. A morte de Mãe Bernadete é um escândalo. É tão escandalosa quanto a morte de Marielle Franco, com a diferença de que até hoje ninguém sabe por que Marielle foi morta. Há suspeitas, mas saber mesmo, ninguém sabe.

CC: Qual análise o senhor faz desses primeiros 8 meses de governo Lula?

MS: Independentemente de ser lulista ou não, de ser petista ou não, o País não pode deixar de reconhecer que a vitória do Lula é um fenômeno de salvação nacional, de salvação moral e ética. Eu vejo o governo com muita satisfação.

Primeiramente, eu vejo no Ministério da Fazenda um homem muito sério. Fernando Haddad, antes de mais nada, é um intelectual, um professor sério. E pelo que eu saiba, um homem honesto. Ele está marcando gols, inclusive nas negociações com essa choldra perigosa que dirige a Câmara dos Deputados. É preciso ter uma cabeça preparada. Eu acho que o Ministério da Fazenda é uma conquista do governo Lula.

Segundo: há ministérios novos que ainda não apresentaram muita coisa, mas com pessoas de alta qualificação, como o Silvio Almeida. Silvio é um professor, um homem capaz, inteiro, digno. Depois, tem uma pessoa que não é do meu grupo político, eu sou de esquerda… Eu me refiro à Simone Tebet, que está mais à direita. Ela é uma ministra confiável no papel dela, digna no papel dela. Também está lá a minha amiga e irmã da Marielle, a Anielle Franco. Da Bahia, a Margareth Menezes, no Ministério da Cultura. Sem falar nesse ministro da Justiça extraordinário, o Flávio Dino.

Além disso, o prestígio internacional do Lula é inegável. Ele trouxe a respeitabilidade de volta.

CC: Qual o papel da educação na superação do racismo?

MS:A escola é a comunidade de partida, é a comunidade fundamental. É preciso uma reforma dos sistemas educacionais, principalmente do nível básico, para que isso aconteça. Houve um grande atraso de quatro anos no governo Bolsonaro. O Ministério da Educação e o da Saúde foram os mais desastrosos. Neles, as piores consciências se mostraram, porque a consciência fascista sabe que a verdadeira resistência ao poder desmedido, à aniquilação da vida, está na educação e na cultura. Eles desmoralizaram a cultura e tentaram desmoralizar a educação.

Quando eu falei dos ministros, não falei do Camilo Santana, pois até agora o Ministério da Educação não disse a que veio. Mas, de um modo geral, para que haja uma mudança na educação do País, é preciso que haja um projeto de país, um projeto nacional, e nós não temos isso. O poder no Brasil está em dívida com a Educação. Está em dívida com um projeto educacional sério. Um projeto que considere que a educação não é só verba, embora seja importante, mas que educação é principalmente, junto com verba, verbo. Tem que entender que não há escola sem professor e que o mais importante em uma escola não são os equipamentos, não é o prédio… é o professor.

CC: Como o senhor vê o caso do escândalo das joias, que envolve não só o ex-presidente Jair Bolsonaro, mas também as Forças Armadas?

MS: Eu coloco essa questão em outro plano. Na questão da quadrilhagem mesmo. Nós temos no neoliberalismo moderno o que eu chamaria de état bandit, na tradução do francês, um Estado bandido. E esse Estado bandido está se multiplicando no mundo. A Rússia é um exemplo de état bandit, onde se permite envenenar, assassinar os adversários. Houve no Brasil uma tentativa de implantar um Estado bandido, que poderia ter vingado se o Lula não ganhasse a eleição. Havia uma quadrilha montada, e o nível de apequenamento foi tão grande que desceu para o nível da joia, de tantos mil dólares, do anel, do relógio. O sistema não pode suportar isso, mesmo o sistema corrupto. As coisas foram muito visíveis. O episódio das joias me faz lembrar de uma frase do mestre Bimba, meu mestre de capoeira: “Malandro demais se atrapalha”. Bandido demais se atrapalha.

CC: E sobre os atos do 8 de Janeiro?

MS: Foram mais de R$ 150 bilhões jogados pelo Paulo Guedes [ex-ministro da Economia] nas eleições, as instituições foram aparelhadas, formaram agrupamentos nas portas dos quartéis, mas nem assim conseguiram ganhar as eleições. Tiveram tudo nas mãos: dinheiro, a indiferença caolha das Forças Armadas, apoio de empresários, fazendeiros, 57 milhões de votos. E ainda tentaram dar o golpe. É uma coisa de certo modo vergonhosa, pois nem golpistas essas elites brasileiras conseguem ser.

CC: No ano passado, o senhor disse que o segundo turno das eleições presidenciais estava sendo regido por Exu. Qual orixá está regendo o terceiro mandato de Lula?

MS: Eu acho que está sendo regido por Xangô. Xangô é o princípio nagô da justiça. Esse princípio é representado pela pedra, representa estabilidade. Há uma busca por justiça, e os ouvidos do governo não são surdos. A questão do desmatamento diminuiu, a matança, a morte dos yanomamis parou. A justiça também se impôs a essa pretensa força golpista dos militares. O segundo princípio de Xangô é o fogo, o tentar fazer, o construir. Isso está sendo difícil, há muita chantagem em cima do Lula, mas ele vai fazer coisas.

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