Educação

Mulheres de fibra do sertão

No semiárido baiano, programas de fomento à agricultura familiar contribuem para o empoderamento feminino e possibilitam uma vida longe das plantações de sisal

Ferreiros|Maria da Paz Barreto
Grupo de produção Mulheres Virtuosas reúne 20 mulheres que produzem sequilho mulheres virtuosas sertão feminismo|paizinha sertão bahia
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Alguns anos atrás, Maria da Paz Barreto teria solicitado a companhia de familiares ou amigos caso precisasse levar um dos filhos ao médico. Desacostumada a sair sozinha de casa, a moradora do povoado rural de Várzea da Pedra, localizado no sertão da Bahia, na região conhecida como Território do Sisal, se sentia incapaz de realizar a empreitada por conta própria. Todo o universo que Paizinha, como é carinhosamente chamada, conhecia estava circunscrito à sua casa e aos papéis de mãe e esposa. “Casei muito cedo, aos 13 anos, e logo parei de estudar. Aos 14 tive meu primeiro filho, depois vieram outros três. Vivia para tomar conta deles e também trabalhava em casa de família para ajudar, mas nunca tive autonomia”, lembra.

Em 2007, porém, uma reunião sobre gênero promovida pelo Movimento de Organização Comunitária (MOC), associação sem fins lucrativos de apoio à mobilização social, mudaria sua vida. Dali, saiu confiante, crente de que era capaz de qualquer coisa. Articulou-se com outras mulheres do povoado e, um ano depois, colocou de pé o grupo de produção “Arte e Sabores”, voltado para a confecção de artesanato em cipó e alimentos como o sequilho, a broa e a polpa de fruta. “No início, foi difícil, meu marido era muito machista. Mas meus filhos me deram apoio. Hoje, posso dizer que sou uma mulher livre. Ganho meu dinheiro, tenho amigos, vou para onde eu quero”, conta a artesã.

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A história de emancipação de Paizinha, felizmente, começa a deixar de ser exceção em meio ao sertão nordestino, ainda tão permeado pelo machismo. Novas oportunidades de geração de renda surgidas por meio do fomento à agricultura familiar têm sido determinantes para a inclusão feminina na região.

Maria da Paz Barreto Paizinha alcançou a emancipação por meio do artesanato

Entre as medidas de incentivo, está a aprovação, em 2009, da Lei nº 11.947 que determinou que um mínimo de 30% do valor repassado a estados, municípios e Distrito Federal pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) deve ser utilizado na compra de alimentos oriundos da agricultura familiar. Outro impulso importante é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), iniciado em 2003 pelo Governo Federal, que compra alimentos produzidos pela agricultura familiar para distribuí-los entre pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e àquelas atendidas pela rede socioassistencial.

A possibilidade de vender em larga escala para os programas não só fortaleceu e aumentou a renda dos pequenos agricultores como também proporcionou às sertanejas a chance de ter um ofício longe das plantações de sisal. Típica da região semiárida, a planta é matéria-prima para a obtenção de uma fibra utilizada na confecção de tapetes, capachos, cordas e outros artefatos. Apesar de encontrar-se em declínio, 90% de sua produção concentra-se no estado da Bahia. O trabalho na roça, além de árduo, é também perigoso. O equipamento utilizado para desfibrar o sisal é rudimentar e obriga o operador a colocar a mão bastante próxima do buraco que descasca as folhas – causa de inúmeros acidentes.

A perspectiva de fugir destas condições pareceu um sonho para Lucília da Silva Pereira Cunha. “Eu estava trabalhando no motor do sisal. Quando ouvi que tinha essa oportunidade de fazer bolo, pão, sequilho, nem pude acreditar. Não achava que seria possível na minha vida ganhar dinheiro com outra coisa que não fosse o sisal”, conta.

Lucília é uma das integrantes do grupo de produção Mulheres Virtuosas, formado em 2010 na comunidade rural de Ferreiros, parte do município de Santaluz. O empreendimento reúne 20 mulheres que produzem sequilho, pão, bolo, biju. Uma das principais encomendas é a venda do pão para o PNAE que totaliza 7 mil unidades a cada quinzena. “É um trabalho duro também. Começamos a assar às 2 horas da manhã e vamos até às 8 horas da noite. Mas é melhor do que o sisal, sem dúvida, que é debaixo do sol forte, no meio do mato”, diz Gilene de Souza Cunha, que aprendeu a dirigir após a abertura do negócio para que pudesse levar as encomendas até a cidade.

Por trás dos grupos de produção como o Arte e Sabor e o Mulheres Virtuosas está a Associação do Movimento de Mulheres e Trabalhadoras Rurais (Antrafas). Hoje, cerca de 280 mulheres agricultoras fazem parte da associação compondo 20 diferentes grupos de produção que se subdividem entre artesanato e alimentos. Do todo, 17 fornecem diretamente para o PNAE e dez para o PAA.

“A Antrafas tem dois objetivos: empoderar as mulheres rurais e qualificá-las profissionalmente para que sejam capazes de gerar renda”, explica Valmira Lopes de Souza, tesoureira da entidade. Além da capacitação técnica, a entidade promove oficinas sobre gênero e possui um papel mediador no que diz respeito à conscientização das famílias. “Já tivemos que ir às casas de companheiras conversar com os maridos para explicar o que eram os trabalhos. Alguns entendem e passam a apoiar. Mas há esposos que são muito resistentes”, diz.

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Para Avanildo Duque, gestor de programas da ActionAid Brasil, organização sem fins lucrativos que atua junto às comunidades e organizações locais oferecendo apoio estratégico e financeiro, o foco nas mulheres é também essencial para o enfrentamento à pobreza. “Uma das causas que estrutura a pobreza, além da própria falta de acesso a recursos, é quem acessa esse dinheiro. O homem tende a ser mais centralizador em relação ao poder e a renda. Já a mulher tem uma característica mais distributiva. Quando você escuta uma dessas agricultoras dizer que sua renda melhorou, pode ter certeza que toda a família está se beneficiando disso”.

Os avanços são perceptíveis como também o é o quanto falta para falar-se em luta por igualdade de gênero na região Sisaleira. Exemplo disso está no fato das mulheres continuarem responsáveis por todos os afazeres domésticos mesmo trabalhando fora ou no desconforto aparente de muitas ao ouvir a palavra “feminismo”. “O tabu ainda existe, mas aos poucos estamos conseguindo quebrá-lo. Para se ter uma ideia, antes tínhamos mulheres que nunca haviam saído de casa e que, hoje, são lideranças dos movimentos sociais de suas comunidades”, defende Valmira.

*A jornalista viajou a convite da ActionAid

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