Disciplinas

Margaret Thatcher, a mãe do neoliberalismo

Princípios que guiaram Margaret Thatcher, para quem o progresso viria pela competição econômica agressiva em um livre mercado capaz de regular a vida social

Estatua de Margaret Thatcher|
Foto de 2007 mostra estátua de bronze da ex-primeira ministra Margaret Thatcher Margaret Thatcher|
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Devido à deterioração de sua mente pelo mal de Alzheimer, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher esteve quase ausente da vida pública desde 2002, quando publicou seu último livro.

Suas últimas intervenções foram o elogio fúnebre de seu parceiro de reação conservadora Ronald Reagan, gravado em vídeo em 2004, e uma silenciosa aparição na Washington de Bush júnior no quinto aniversário dos atentados de 11 de Setembro.

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As reações à sua morte (por um AVC, em 8 de abril de 2013) mostraram, porém, que suas marcas na história continuam muito vivas, tanto para aliados e admiradores quanto para adversários e vítimas.

O governo conservador de David Cameron a considerou “o maior primeiro-ministro britânico em tempos de paz” e organizou um funeral solene como não se via desde a morte da princesa Diana ao custo de 8 milhões de libras.

Mas não poucos festejaram nos pubs e nas ruas o fim da antimusa da contracultura britânica, do punk rock a Alan Moore. Assim previram canções de seu tempo como Tramp The Dirt Down, de Elvis Costello (Cos when they finally put you in the ground/ They’ll stand there laughing and tramp the dirt down, “pois quando finalmente enterrarem você/ vão ficar aí para rir e pisotear o chão”), ou mais recentes, como The Day That Thatcher Dies, da banda Hefner, já nos anos 2000 (We will laugh the day that Thatcher dies,/ Even though we know it’s not right,/ We will dance and sing all night, “quando Thatcher morrer, vamos rir o dia todo./ Mesmo sabendo que isso não é certo/ Vamos dançar e cantar a noite toda”). Dispararam as vendas da canção Ding Dong the Witch is Dead, de O Mágico de Oz.

As mídias e redes sociais de outras partes do mundo também se dividiram entre o enaltecimento desmesurado e as críticas duras, vindas não só de radicais de esquerda, da Argentina derrotada nas Malvinas ou dos chilenos ressentidos por seu apoio ao ditador Augusto Pinochet.

O chanceler australiano, Bob Carr, lembrou-se de que, quando governava Nova Gales do Sul, a então ex-premier o advertiu contra o risco de imigrantes asiáticos tomarem o poder dos europeus “nativos” (sic), na frente de sua esposa de origem malaia.

Na África do Sul, o presidente Jacob Zuma enviou condolências protocolares ao Reino Unido, mas outros ex-líderes da luta contra o apartheid, entre eles o ex-ministro Pallo Jordan, comemoraram, lembrando que ela apoiou o regime branco e chamou de “típica organização terrorista” o Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela.

Não se viu nada parecido – salvo pela solenidade do funeral – quando faleceu Winston Churchill, em 1965. Foi um ícone conservador tanto quanto Thatcher, mas a esquerda o respeitava, pois sua maior luta, contra o III Reich, estava terminada e havia unido o país.

Para a primeira-ministra, ao contrário, a refrega de opereta contra a Argentina foi apenas um golpe de sorte que lhe permitiu recuperar popularidade e se firmar no poder para travar seu verdadeiro combate, a guerra de classes.

Nesta, pode-se dizer, ela foi vitoriosa durante sua vida: até os trabalhistas da “terceira via” de Tony Blair se renderam, na prática, às suas ideias. Mas o preço foi dividir a sociedade a fundo e não só dentro das Ilhas Britânicas.

Ilusões à parte, a era de Margaret Thatcher não trouxe recuperação econômica real. O crescimento médio da economia em seu governo foi de 2,4% ao ano, idêntico ao dos problemáticos anos 1970 e bem inferior ao dos anos 1960.

A renda dos 20% mais pobres estagnou em seu governo e a dos 20% mais ricos cresceu 48%. O índice Gini de concentração de renda cresceu de 25, em 1979, início de seu governo, para 34, em 1990, no final e hoje está em 35.

Se as elites festejaram foi porque Margaret Thatcher quebrou a espinha do movimento sindical, reduziu de 65% para 53% a participação dos trabalhadores na renda nacional e, por meio das privatizações, permitiu aos empresários – ou melhor, aos banqueiros, pois a indústria nacional foi dizimada e o país colocado a serviço da City, o centro financeiro londrino, do qual depende cada vez mais – explorar uma fatia muito maior da economia nacional, adquirida a preço de ocasião.

Sua influência extrapolou de muito a costa da Grã-Bretanha, graças à parceria com Ronald Reagan, na qual ele era o músculo e ela, o cérebro. Seu lema “não há alternativa” (there is no alternative – TINA, como abreviaram admiradores e adversários) quebrou o pacto social do pós-guerra, desautorizou meio século de pensamento keynesiano, precedeu em uma década O Fim da História, de Francis Fukuyama, e moldou o pensamento neoliberal de toda uma geração, juntamente com seu “a sociedade não existe, o que existe são os indivíduos”, com o qual legitimou a ganância e o egoísmo das elites e a miséria dos excluídos.

Mesmo se caiu ao levar longe demais suas políticas regressivas e restaurar a medieval capitação (taxa per capita, independente da renda) no lugar dos impostos sobre imóveis, o que desencadeou revoltas populares e a pôs contra o próprio partido.

O modelo neoliberal criado por Thatcher e Reagan começou a ser desacreditado nos países do Sul na virada do milênio e no Norte sofreu com a crise de 2008 um golpe do qual talvez não mais se recupere, mas ainda é em seu nome ou contra ele que se travam as batalhas políticas de hoje, uma explicação para o uso tão passional de sua imagem em pleno 2013.

Na essência, Angela Merkel tenta fazer com a Europa de hoje o que Thatcher fez com o Reino Unido dos anos 1980 de maneira algo menos radical, mas com ainda menos legitimidade, visto ter sido eleita para governar seu país e não todo o continente.

É sua mais notável continuadora, por mais que sua precursora britânica tenha feito tudo o que estava ao seu alcance para combater a reunificação da Alemanha e a criação do euro.

Do outro lado do Atlântico, o Tea Party e muitos de seus admiradores nas oposições latino-americanas insistem em defender um thatcherismo sem concessões.

Enquanto tais forças continuarem no palco político, o espírito da ex-líder poderá dizer, como outrora Mark Twain, que “as notícias sobre a minha morte foram muito exageradas”

* Leandro de Almeida é historiador e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
** Publicado originalmente em Carta na Escola

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