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Machu Picchu reinventada

O conhecimento sobre civilização inca não corresponde às imagens que os meios de comunicação e artísticos atribuídos a Machu Picchu

Machu Picchu||Machu Picchu
Um século depois de descoberta pelo arqueólogo Hiram Binghan Machu Picchu
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Em 1911 um arqueólogo norte-americano chegou a uma cidade completamente abandonada, escondida entre as montanhas andinas, no Peru. Hiram Bingham foi conduzido até as proximidades de Machu Picchu por guias locais conhecedores dos relatos orais que mencionavam a localização de grandes ruínas incas no topo da “montanha antiga” ou da “montanha dos ancestrais” – significados dos termos quéchuas que denominam o famoso local.

Ali encontrou santuários, casas do povo e moradas de guerreiros e sacerdotes que fariam ressurgir um passado pré-hispânico preservado pelas ruínas.

Leia atividade didática de História para o Ensino Fundamental II sobre Machu Picchu

Expectativas de aprendizagem: Colher informações de diferentes fontes da sociedade contemporânea como cinema, fotografia, etc.;Comparar pontos de vista; Identificar no espaço e no tempo as sociedades estudadas

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1- Reúna informações sobre Machu Picchu e os incas encontradas no meio de comunicação, obras cinematográficas, literárias e de divulgação científica. Em seguida, sugere-se a comparação das informações coletadas para a montagem de um painel de diferenças. Organize o painel com base em eixos comparativos, por exemplo: as qualidades atribuídas aos dirigentes incas, as formas que os incas empregariam para dominar outros povos, os usos das riquezas que os incas acumulavam, as funções políticas que teria Machu Picchu, os saberes construtivos empregados na construção desse sítio etc.

2- As diferenças podem ser contrastadas com conhecimentos acadêmicos mais recentes sobre os incas e Machu Picchu, como uma forma de tentar perceber quais os tipos de material onde se coletaram as informações estariam mais embasados nos estudos acadêmicos e quais estariam mais distantes. Ainda seria possível montar hipóteses sobre as razões que fundamentam as diferenças existentes entre os diversos tipos de material que abordam o tema dos incas e de Machu Picchu.

SAIBA MAIS
Livro
Canto General, de Pablo Neruda (Poema Alturas de Machu Picchu).

Filme
Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

Sites
Centro de Estudos Mesoamericanos e Andinos da Universidade de São Paulo .
Associação Nacional dos Pesquisadores e Professores de História das Américas

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Em 2011, cem anos após a redescoberta da cidade sagrada,  perdida por séculos e séculos, Machu Picchu entrou para a lista das sete novas maravilhas do mundo – junto à Muralha da China, Petra (uma espécie de cidade esculpida na pedra, na atual Jordânia), ao Cristo Redentor, às ruínas da cidade maia de Chichén Itzah, ao Coliseu romano e ao Taj Mahal indiano –, foi para as telas do cinema (no filme Diários de Motocicleta), embalou cantos do poeta chileno Pablo Neruda, além de aguçar a curiosidade de milhares de turistas.

Hiram Bingham Guiado por locais que sabiam de relatos orais, Hiram Bingham chegou à cidade abandonada

Tornou-se, de fato, um local famoso, como sugere o significado de seu nome. Diante das dezenas de milhares de sítios arqueológicos ameríndios, o que torna Machu Picchu especial? O saber que os estudiosos têm sobre civilização inca corresponde às imagens e sentidos que a imprensa, a literatura e o cinema lhe atribuem?

Reencontro e disputas hegemônicas

Realizar “descobertas” arqueológicas não era uma novidade nesse início do século XX. Inúmeros sítios maias e de outras regiões da América passaram por processos semelhantes.

Em geral, após essas “descobertas”, era realizado o registro iconográfico do sítio. Peças e objetos eram enviados para as instituições de pesquisa, museus ou acervos dos colecionadores particulares que haviam financiado as expedições e as escavações.

No caso de Machu Picchu, somente em 2010 a Universidade Yale, onde Hiram Bingham era professor, aceitou devolver ao Peru todos os objetos que de lá foram retirados no começo do século XX.

As fotos de Machu Picchu realizadas nas três expedições chefiadas por Hiram Bingham começaram a se espalhar pela Europa e pela América e a encantar ávidos consumidores de imagens. Inicialmente, encantaram muito mais os estrangeiros do que os próprios peruanos – a sociedade não indígena concentrada no litoral não nutria muito orgulho ou simpatia pelo passado indígena e pela grande parcela indígena da população peruana, concentrada especialmente nas terras altas.

Os não índios tentavam apagar as marcas históricas desse passado indígena. A elite peruana tentava reafirmar sua hegemonia política com obras como a inauguração, em 1935, de uma monumental estátua equestre do conquistador Francisco Pizarro na região central de Lima, trasladada para um ponto politicamente menos importante e emblemático da capital do país somente no ano de 2003, após muitos protestos de movimentos indígenas peruanos.

A redescoberta de Machu Picchu, por outro lado, contrapôs a cultura inca à tradição colonizadora e alçou a importância de equilibrar as etnias que compõem a mestiçagem peruana.

Desde meados do século XX, no próprio Peru e em outros países da América Latina, o passado indígena andino fora tomado com muita simpatia por artistas, revolucionários, intelectuais, ativistas políticos e por uma parcela da população não indígena de tendência política socialista ou de esquerda – da qual Pablo Neruda e Ernesto Che Guevara fizeram parte.

Além disso, o passado dos incas era visto como uma espécie de utopia possível, pois remeteria a uma ordem social e política justa e de tendência igualitária ou distributiva que já tivera uma realização histórica concreta.

Essas ideias e imagens sobre os incas e seu reino, assim como sobre sua derrota total apenas para os castelhanos, corresponderiam à realidade passada nos Andes Centrais durante os séculos XV e XVI? É difícil dar uma resposta simples e taxativa para essa questão.

Incas e sociedades pré-hispânicas

Machu Picchu A população local guiou o arqueólogo norte-americano até a cidade perdida de Machu Picchu

Os incas e praticamente todos os povos andinos precedentes apresentavam conformações sociopolíticas com profundas e demarcadas hierarquias.

Havia grandes desigualdades na repartição do poder e das riquezas entre as elites dirigentes e as demais camadas da população. Tais elites exerciam o poder e controlavam aparatos e instituições estatais e, assim, garantiam sua posição de mando.

Estudos arqueológicos e históricos mostram, claramente, a longevidade desse tipo de sociedade no mundo andino, que expressava o seu poder por meio da monumentalidade construtiva.

Essas sociedades hierárquicas disputavam acirradamente as áreas de dominação ou influência por meio de pactos e de guerras, fundamentais para a instauração e manutenção de macroestruturas políticas dos reinos ou impérios.

A história andina pré-hispânica pode ser contada por meio da construção e dissolução dessas redes de hegemonia política e cultural, como foram as redes encabeçadas por Chavin de Huantar, pelos paracas, pelos moches, pelos nascas, por Tiahuanaco, por Huari, pelos chimus, collas, lupacas e, por fim, pelos incas.

Em outras palavras, seja com relação às divisões internas ou com relação às dominações sobre os outros grupos étnicos, os incas foram um fenômeno histórico muito semelhante aos anteriores e que, ademais, construíram o Tahuantinsuyu – ou o domínio sobre as Quatro Partes do Mundo – com base em redes de dominação pré-existentes.

Por outro lado, os estudos arqueológicos, históricos e antropológicos têm demonstrado que a constituição desses reinos e impérios contava com outra prática fundamental da política andina: a reciprocidade, ou seja, a obrigação contraída por quem recebe algo (um governante que recebia tributos em trabalho, por exemplo) de fornecer alguma outra coisa em troca ou em agradecimento – uma festa, por exemplo.

A reciprocidade operava em todos os níveis sociais e em todas as formas de hierarquia política, tanto nas estabelecidas no interior de uma mesma etnia quanto em diferentes grupos étnicos.

Esse princípio da política andina foi, aos poucos, abandonado durante o período colonial. Na medida em que o poderio dos castelhanos aumentou e o das populações nativas diminuiu, o trabalho e o tributo que recaia sobre os indígenas se tornou cada vez mais pesado e aplicado sem a oferta de qualquer tipo de contrapartida.

Utopia inca

É justamente nesse contexto colonial que começa a ser construída, por membros ou descendentes das antigas elites incaicas, a idealização do Tahuantinsuyu, descrito como um reino de perfeita organização e controle e, especialmente, sem fome ou excessos de tributos.

Tal ideia se espalhou entre as tradições orais andinas, criadas e mantidas por indígenas submetidos aos últimos degraus de sociedades hierarquizadas, discriminatórias e extremamente exploradoras de sua mão de obra.

Em outras palavras, o passado inca tornou-se um tipo de utopia política também para os indígenas, que, sendo assim, deveriam atuar para modificar a ordem social e fazer com que a época de suposta harmonia social regressasse.

É na confluência entre a longeva utopia andina e o crescimento da força política das ideias socialistas na América Latina, após as décadas de 1920 e 1930, que Machu Picchu começa a ser uma espécie de ícone dos movimentos políticos de esquerda em toda essa porção do continente americano.

Diferentemente de Cuzco, a capital dos domínios incaicos que fora quase totalmente coberta pela sobreposição de uma cidade colonial castelhana e continuava a ser habitada por povos indígenas e por descendentes de castelhanos, Machu Picchu estava deserta, como se tivesse sido “congelada” no tempo e estivesse pronta para voltar à vida, da mesma forma como se acreditava ser o caso do passado incaico.
Cidade fantasma – Por que os incas deixaram Machi Picchu?

A razão que teria ocasionado o abandono de Machu Picchu não é totalmente conhecida. Sabe-se, com segurança, que as diferentes linhagens que constituíam as elites incaicas mantinham os bens oriundos de suas conquistas como posses permanentes de seus realizadores e seus descendentes.

Era relativamente comum que famílias de nobres contassem com possessões: templos, terras, palácios e pequenas cidades, como Machu Picchu, espalhadas em diversas regiões do Tahuantinsuyu, e não apenas nas imediações de Cuzco.

O complexo processo de conquista dos incas, entre 1532 e 1572, opôs tanto castelhanos contra incas quanto certas linhagens incas contra outras linhagens incas, além de contar com outros grupos indígenas associados tanto aos castelhanos quanto aos incas.

Tal processo levou a uma crescente perda de poder das elites incaicas, fazendo com que algumas linhagens optassem por se tornar aliadas dos castelhanos, permanecendo como autoridades locais em Cuzco, e que outras se refugiassem em Vilcabamba, para de lá combater ou conseguir um pacto mais vantajoso com os castelhanos e seus aliados.

É quase certo que foi neste contexto que Machu Picchu foi abandonada, devido à desarticulação da perda de poder da linhagem incaica que a possuiria e controlaria, a linhagem de Pachacutec.

* Eduardo Natalino dos Santos é professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP

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