Disciplinas

Lições de pedra de João Cabral

Os versos de João Cabral 
de Melo Neto são uma investigação das imagens que habitam o Nordeste brasileiro

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Fazer poesia é como catar feijão. Essa é uma imagem estranha: a princípio, fica difícil entender como é que duas atividades tão diferentes podem se aproximar. Mas é mesmo de imagens estranhas – que precisam ser lidas e relidas, e exigem tempo para que sejam compreendidas – que se compõe a obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). O poeta pernambucano trabalha na chave do estranhamento, a partir de metáforas muito simples e ao mesmo tempo inusitadas, que nos colocam num ponto de observação do mundo diferente daquele com o qual estamos acostumados.

Leia atividade didática inspirada neste texto
Competências: analisar, interpretar e aplicar recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos
Habilidades: estabelecer relações entre o texto literário e o momento de sua produção; Relacionar informações sobre concepções artísticas e procedimentos de construção do texto literário
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Poema é ponto de partida para trabalho de descrição

Mundo mineral

É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza
da palavra escrita.

(trecho de Psicologia da Composição)

1) No trecho acima, o papel e os livros são caracterizados como substâncias minerais, assim como a flor e as plantas, as frutas e os bichos. A ideia de um “estado de palavra” e de “coisas feitas de palavras” é importante, porque retoma essa concretude que caracteriza a atitude de João Cabral em relação à poesia: essa palavra escrita é vista como mineral, de uma “fria natureza”.

2) Discuta com seus alunos em que aspectos essa maneira de tratar as palavras é diferente daquela com que as tratamos cotidianamente. O que significa entender os nomes como coisas feitas de palavras? Como as metáforas podem ser recursos que recuperam essa materialidade das palavras? Se o papel em que se escreve é mineral, será que as palavras escritas nele também têm esse caráter? E as ideias que elas representam?

3) A partir dessa conversa, proponha uma atividade de redação, que pode ser feita em prosa ou em versos: descrever um objeto em seus mínimos detalhes, usando apenas substantivos concretos para isso. Assim como a poesia de João Cabral, que é sempre muito seca, para essa descrição os alunos devem evitar o uso de adjetivos e de substantivos abstratos, procurando se deter naquilo que realmente estão vendo à sua frente para escrever.[/bs_citem]

A imagem de alguém catando feijão nos envia a um cenário típico do nosso país: uma dona de casa preparando o almoço, cuja mistura é a grande marca do prato brasileiro – o arroz com feijão. E o poeta João Cabral, com seus versos, se insere justamente nesses momentos cotidianos, olhando para o povo e procurando encontrar a voz desse povo.

Ao aproximar a atividade do poeta com a da dona de casa que cata feijão, ele nos faz perceber: assim como os feijões são postos na água para que se joguem fora os grãos que boiarem, por estarem ocos e estragados, assim também faz o poeta com as palavras no papel. É preciso sentir o peso dessas palavras, conhecer a sua concretude, para que elas então tenham substância para fazer parte do poema.

Essa comparação é muito oportuna para começarmos a compreender a poesia de João Cabral: pois é uma obra muito concreta, que trata as palavras como coisas, como pedras ou feijões, e que entende fazer poesia como um trabalho tão braçal e minucioso quanto o do engenheiro ou até mesmo o do trabalhador que lavra a terra.

Nascido no Recife em 1920, João Cabral passou a vida em peregrinação. Com 20 e poucos anos mudou-se para o Rio de Janeiro; mais tarde, tornando-se diplomata, viveu por 40 anos no exterior, passando por países como Equador, França, Espanha, Guiné, Mauritânia e Portugal.

Foi nessas viagens, olhando o Brasil de fora, que ele produziu boa parte de sua obra poética. Mas, como se pode ver, esse afastamento de seu país não significa absolutamente que João Cabral se esqueceu de sua origem em Pernambuco. Ao contrário, toda a sua poesia é uma investigação das pessoas, dos cenários e das imagens que habitam o Nordeste brasileiro – desde a descrição das paisagens da seca até as reflexões sobre os rios: “No Sertão, a pedra não sabe lecionar, / e se lecionasse não ensinaria nada, / lá não se aprende a pedra: lá a pedra, / uma pedra de nascença, entranha a alma”.

Dessa perspectiva radical que encontramos nos versos de Educação pela Pedra, surge um sertão duro e real que não pode ser descrito por palavras num poema: um sertão que é pedra e que, tanto quanto a pedra, não tem como ser completamente apreendido pela poesia.

É por isso que é preciso abrir espaço, no poema, para essa realidade que não está preocupada em ensinar ou aprender; para essas pessoas que vivem a partir da experiência do pouco, do seco, da sobrevivência. Esse é um sertão feito de “coisas de não”, como se diz no longo poema Morte e Vida Severina: “Fome, sede, privação”.

Assim também em O Cão sem Plumas (outra imagem, aliás, muito estranha e misteriosa), a visão de um rio é tratada como um símbolo dessa paisagem de fome: “Aquele rio / é espesso / como o real mais espesso. / Espesso / por sua paisagem espessa, / onde a fome / estende seus batalhões de secretas / e íntimas formigas”. Mesmo a fome, que parece tão abstrata e indescritível em sua força, ganha aqui um caráter de coisa, a partir dessa metáfora impressionante dos seus batalhões de formigas secretas. E a maior preocupação do poeta é não maquiar nem romantizar essa espessura que ele constata tanto no rio quanto na fome: sua busca é trazê-la ao poema da forma mais concreta possível, sem “plumas” nem enfeites.

É por causa disso que a leitura da poesia de João Cabral pode ser também, ela mesma, uma experiência dessa carência que é constantemente retomada, de formas diferentes, em toda a sua obra. E voltar aos seus versos é uma maneira de conhecer, através das palavras, essa pobreza tão rica e profícua que vem das profundezas do Brasil – são verdadeiras lições de pedra.

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