Disciplinas

João Antônio, um autor marginal

A “prosa dura” do premiado escritor João Antônio que foi a campo e mostrou as entranhas da cidade de São Paulo, mas hoje é pouco conhecido

João Antônio|
Após um incêndio consumir sua casa João Antônio
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Pouco se fala sobre João Antônio Ferreira Filho, o jornalista e escritor brasileiro conhecido apenas como João Antônio.

Mesmo que seus livros tenham sido ganhadores de diversos prêmios e imediatamente reconhecidos pela crítica, o grande público acabou por nunca dar a devida atenção a esse autor e, 17 anos depois de sua morte pouca gente se lembra da importância fundamental que ele exerceu no cenário da literatura brasileira.

O próprio João Antônio, inclusive, confessou algumas vezes que não se sentia à vontade encarnando o papel de escritor notável, como se pode ver, por exemplo, em um trecho da entrevista concedida à Gazeta Esportiva, em 1965.

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“Honestamente, sem pose, os prêmios não estão me dizendo nada. Um sentimento de falência, certo nojo pela condição dos homens e até mesmo ternura, às vezes; quase pena”.

É que sua postura diante da vida sempre foi muito coerente com os temas presentes em seus livros: se quase todos os seus contos colocaram em destaque os personagens deixados de lado pela sociedade – marginais, malandros, operários, moradores da periferia das grandes cidades –, João Antônio também escolheu viver uma vida próxima à da marginalidade, desapegando-se das coisas ao seu redor para se dedicar integralmente à literatura.

Assim, com 15 livros publicados, dois prêmios Jabuti, além de outros prêmios importantes, ele nunca aceitou participar de cerimônias ou se vincular a grupos literários, e aceitava apenas convites de escolas e universidades, por causa de sua identificação com os professores.

Longe do protocolo, recolheu-se à vida simples de quem prefere os restaurantes populares, os bares, as mesas de sinuca – afinal, eram esses os ambientes nos quais a matéria-prima de sua escrita se revelava.

E escrever, como João Antônio sempre afirmou, não é apenas produzir livros: “É necessário que o escritor arregace as mangas e saia a campo”; “só se pode fazer arte se for com pele, vísceras, arrebentando o interior” (esses e outros depoimentos se encontram nas diversas entrevistas dadas pelo escritor a jornais e revistas).

Seu primeiro livro, Malagueta, Perus e Bacanaço, cuja última edição pela Cosac&Naify traz um prefácio bastante esclarecedor de Antonio Candido, tornou-se o mais conhecido do autor, e tem uma história interna que antecede a sua publicação.

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Quando um incêndio consumiu a casa da família de João Antônio, em 1960, levando os originais da obra juntamente com todos os outros bens, o escritor não se deu por vencido e passou algum tempo reescrevendo de memória todos os contos, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade.

Foi então somente em 1963 que o livro foi publicado, e muito bem recebido pela crítica – tornou-se o primeiro livro estreante a ganhar dois prêmios Jabuti, um de revelação de autor e outro de melhor livro de contos.

Não à toa: basta começar a ler os contos que integram o livro para dar-se conta da qualidade e do caráter único do que se tem em mãos. Sua “prosa dura” é caracterizada por Antonio Candido como “reduzida às frases mínimas, rejeitando qualquer ‘elegância’ e, por isso mesmo, adequada para representar a força da vida” – é uma linguagem que nos aproxima da oralidade; um texto que parece ter brotado espontaneamente em meio às ruas e avenidas da cidade de São Paulo, mas que é fruto de um trabalho extremamente cuidadoso sobre o ritmo e a estrutura das falas.

As descrições, tanto dos personagens quanto dos cenários, nos fazem lembrar de uma cidade que sempre vemos, que conhecemos, mas que, no entanto, costumamos ignorar, levados pelos compromissos do dia a dia: os botecos sujos de esquina com suas mesas de bilhar, as quebradas escuras na madrugada, os mendigos esquecidos nas calçadas, as prostitutas e os cafetões do Largo do Anhangabaú.

É a partir de situações que colocam em cena a realidade de quem sofre para conseguir o que comer dia após dia, de personagens sem nenhuma idealização, que João Antônio desperta no leitor a descoberta de um mundo que faz parte de seu cotidiano de cidade grande, mas que ele insiste em negar ou tentar encobrir.

Dividido em três partes (“Contos Gerais”, “Caserna” e “Sinuca”), o livro tem contos longos e curtos, alguns mais pesados e outros mais leves.

O último e maior de todos, conto título do livro, Malagueta, Perus e Bacanaço, foi reconhecido por Candido como um dos mais altos da literatura contemporânea, “pela força da escrita, o peso humano e a coragem de mostrar as entranhas da cidade”, e originou o filme de 1976 O Jogo da Vida, dirigido por Maurice Capovilla e incluindo Lima Duarte no elenco.

São três personagens, parceiros no jogo de sinuca: Malagueta, um velho acabado; Bacanaço, malandro de autoridade e sapatos lustrados, e o menino Perus, um bom jogador com a mania de enumerar as coisas que vê pela cidade.

O conto retrata uma noite em suas vidas, as suas perambulações de um canto a outro da capital em busca de um boteco aberto e com boas ocasiões de jogo – a possibilidade de comer no dia seguinte depende disso, afinal.

Começando na Lapa e seguindo pela Água Branca, Barra Funda, centro e Pinheiros, o leitor paulistano vai reconhecendo os nomes de ruas e os ambientes, mas através da perspectiva desses personagens, da identificação de Malagueta com um cachorro vira-lata, da sensibilidade desencontrada de Perus no nascer do sol, dos bondes “catando ou depositando gente empurrada e empurrando-se no ponto inicial”.

Com uma linguagem ao mesmo tempo simples e sofisticada, João Antônio consegue usar gírias e palavrões em construções gramaticais complexas; seu olhar preciso revela o avesso daquilo que a televisão costuma mostrar, e nos coloca junto do que procuramos evitar.

No texto de apresentação 
a Malagueta, Perus 
e Bacanaço, João Antônio 
diz que “qualquer boteco é lugar para escrever quando se carrega 
a gana de transmitir”. Discuta com os alunos a importância dessa frase para o tipo de literatura feita pelo autor, considerando o trabalho 
de dessacralização da linguagem 
e dos personagens.

É bom lembrar que isso não significa banalização da escrita, já que é a partir 
de cenários como os botecos 
que o autor desenvolve textos visivelmente trabalhados, 
com ritmo particular 
e forte carga poética.

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