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Fábulas: uma faísca na alma

O saber experimentado cotidianamente, mas oculto de nós mesmos, é matéria-prima das narrativas curtas de Esopo e La Fontaine

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Esopo? Quem é? Aquele grego antigo que escrevia fábulas? Quem nunca ouviu falar de Esopo? Pouca gente. Se o Ocidente dependeu dos filósofos gregos para estabelecer certo modo de pensar, um tipo específico de lógica para construir certas perguntas e respostas a respeito de tudo o que pode ser perguntado e respondido, não encontrou nas fábulas essa estrutura. No entanto, jamais esqueceu seus mitos, provérbios, contos de fadas e não apagou da memória os relatos de Esopo, o grande fabulista da Grécia Antiga, nem de outros fabulistas de todas as épocas e culturas.

Somos, nós ocidentais, herdeiros mais diretos dos gregos antigos, fato que não significa que o fabular (e o mitologizar) seja algo pertinente só aos textos gregos antigos e datados. A criatividade humana nesse campo parece ultrapassar o que compreendemos por História. Criar fábulas todas as culturas criam. A fábula dispensa hipóteses, argumentos, provas, persuasão; elas institui um paradoxo para os que acreditam na evolução – “para melhor” ou “para pior” – do homem.

Por quê? Acontecimentos encadeados podem ser, por vezes, lidos como progresso humano em muitos aspectos, quer relativos ao conhecimento, quer às ações, porém, há nessa atividade de fabulação (ou mitologização) algo muito peculiar: a verdade da fábula não está sujeita ao retrato das épocas ou às culturas, sendo modos de vivenciar, por imagens, a compreensão de um relato de acontecimentos, pertinente aos homens ou animais, ou até a coisas fabricadas, com valores determinados que, dizemos, são universais, perenes. Leiam esta pequena fábula, sem que se saiba o autor, e vivenciem o que é dito:

“Uma gralha sedenta pousou sobre um cântaro e tentou entorná-lo à força, mas não conseguiu tombá-lo porque ele estava apoiado com muita firmeza. A gralha acabou conseguindo o que queria por meio de um artifício: jogou seixos dentro do cântaro, o que fez a água que estava no fundo vir à tona e transbordar. E foi assim que a gralha aplacou sua sede. Moral da História: a inteligência burla a força”.

Ora, qualquer um poderia ter pensado nessa fábula, em qualquer época, e a validade dela continuaria a mesma. Ela é de Esopo, mas poderia ser de outro alguém. Compreendemos perfeitamente o que a fábula diz e aprendemos algo que, afinal, já sabemos, mas nos maravilhamos ao lê-la como se fosse algo novo. Que a inteligência burla a força? Óbvio!

Estamos acostumados, cotidianamente, a experimentar esse tipo de saber que se oculta a nós mesmos, que não necessita de qualquer aval das construções arrazoadas e ditas verdadeiras quando bem argumentadas. Esse saber nos chega por meio de narrações curtas, fábulas, mitos, historinhas ao estilo Sufi, que instruem aos que as ouvem e têm o brilho da verdade, sem a – obrigação de um aprendizado anterior – que talvez já esteja elaborado e oculto em nós –, e se encaixa não só na alma do seu criador, mas na alma do ouvinte, sem qualquer premeditação, como se tivéssemos, de antemão, esperando o encaixe dessa sabedoria que já temos e não sabíamos. Nós mesmos poderíamos tê-las escrito, sem provas, sem argumentos. O engenho e a arte do fabulista penetram sem qualquer dificuldade em nossa própria criatividade.

As fábulas potencializam o aparecimento de uma faísca na alma. São escritos que se preocupam em passar os valores básicos da vida humana, observados e vivenciados com acuidade por aquele que quer inventá-las.  Elas têm um dom: expandir, em suas conclusões, o mundo ético para o bom entendimento de todos. Claro, ao inventor é preciso o ócio, o contrário do “neg+ócio”, pois só nesse estado um tanto contemplativo pode haver tranquilidade para a observação e criação.

Em geral, não há grande novidade na moral da história que logo -intuímos: mesmo saborosa, já sabíamos do seu sentido, apesar do trabalho de síntese do fabulista. O fato de construir uma fábula e o ouvinte reconhecê-la como pertinente é, como diriam os antigos gregos, um dom das Musas. Um fabulista é um poeta inspirado pelas Musas: recebe como uma faísca na alma – ou um sopro de inspiração nos ouvidos – o que deve dizer/escrever, com a segurança de que deve passar adiante o que recebe. Afinal, as Musas que o inspiram assim o fazem para que ele cante a inspiração.

Por que não consideramos o fabulista um filósofo? Em sentido corriqueiro, quando dizemos que alguém é sábio porque tem larga experiência das coisas da vida, costumamos chamá-lo de filósofo, mas o termo está mal aplicado. Se o filósofo também precisa de inspiração das musas, e precisa mesmo, sua mensagem não é direta, é trabalhada arduamente por argumentos. O fabulista, ao contrário, tem a seu favor o brilho instantâneo do canto que surge de uma só vez… e ele escreve. Como o poeta que faz versos, fabula La Fontaine:

cisne

“Levando relíquias, um Burro imaginou que era adorado. Andava, pois todo afetado, como se o incenso e os cânticos fossem por seus zurros. Notando o erro, alguém se expressa: ‘Tire essa ideia, Mestre Burro, da cabeça, tola e vaidosa bobagem. Não é a você, mas à imagem que cabe a glória do instante e tanta honra é prestada. De um magistrado ignorante a toga é que é respeitada.”

Essa fábula de Jean de La Fontaine poderia ser também de Esopo, se não considerarmos o estilo da escrita. Como se vê, não há historicidade para esse tipo de criatividade. E aí estão Esopo, La Fontaine, Irmãos Grimm, histórias de Sufi, Confúcio, lendas indígenas, mitos, contos de fadas… A universalidade dessas criações não é explicada nem pode ser. Não se apresentam na superfície da psique, vão mais fundo.  Se estimulam a imaginação – o que de fato fazem –, elas também provocam o ouvinte/leitor em algum ponto de si mesmo, como se já houvesse um espaço à espera de todas elas na alma (será que podemos usar, ainda, esta palavra?).

Então, se assim for, as fábulas, especificamente, são verdadeiros potencializadores do conhecimento vivido, aprendido e esquecido em nossa memória sempre pronta a ser atualizada. São modelos de sabedoria que já estão conosco, de algum modo. Se morrerem, morre nossa sensibilidade criativa e um pedaço da psique.

Em edições extremamente bem cuidadas, a editora Cosacnaif lançou dois livros de fábulas: Esopo – Fábulas Completas, e La Fontaine – Fábulas Selecionadas, demonstrando sensibilidade e respeito aos futuros leitores. Quer esteticamente, quer na escolha dos tradutores e ilustradores, e, no caso de Esopo, com a apresentação benfeita de Adriane Duarte e tradução da professora de Língua e Literatura grega Maria Celeste Dezotti, a edição chega a ser -luxuosa. No que diz respeito a La Fontaine, há o cuidado de Leonardo Fróes na tradução e o interessante posfácio do próprio fabulista, que tece comentários sobre sua própria obra. Sorte do leitor.

Afinal, fabular é algo que vem com a civilização humana e, no caso de Esopo, remonta à Grécia Antiga – e não sabemos o sé-culo em que escreveu, porém os primeiros recolhimentos de suas fábulas indicam o século V a.C. Mais próximo a nós, La Fontaine (1621-1695), nascido na França, além de conhecido fabulista escreveu poemas e uma novela (Os Amores de Psyché e Cupido), adaptada por Molière para o teatro.

É interessante lembrar que o próprio La Fontaine considerou Esopo seu grande inspirador, e como todo “intelectual” de sua época, também ele não poderia desconhecer os antigos textos gregos, inclusive filosóficos, nomeando-os, e no seu posfácio é relevante a citação de Sócrates-Platão, em sua visão do que é fabular (Fédon e Fedro), como modelo de seu trabalho. O nomeado “gênero fábula”, uma qualificação recente do campo dito “literário”, resulta ser mais do que um ensinamento moral: carrega consigo conhecimentos outros, como nota o próprio La Fontaine: “…As fábulas são, assim, um quadro onde cada um de nós se encontra retratado”.

Ao lermos Esopo, o maior sentido da fábula está na “moral da história”, esta sim, o verdadeiro ensinamento. Por isso, é uma pena que na diagramação da bela edição da Cosacnaif tenham sido escolhidas letras minúsculas para indicá-la, a cada uma das fábulas, sempre semiescondida à esquerda do pé da página. No caso de La Fontaine, seu estilo de escrita pode dispensar a “moral da história” porque os ensinamentos estão desdobrados nos versos. La Fontaine cria poemas-fábulas curtos e longos; Esopo, fabulista conciso, consegue escrever uma fábula em um parágrafo. Estilos diferentes, criatividades grandiosas, um presente que, nos dias de hoje, remete o leitor a olhar seus próprios valores e imaginação.

*Publicado originalmente em Carta Fundamental

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