Educação

Especialistas acusam Bolsonaro de politizar o piso salarial de professores: ‘Reajuste está previsto em lei’

Embora o ex-capitão tenha inflado o discurso sobre o piso da educação básica, o governo atuou para negociar um reajuste bem inferior

Jair Bolsonaro e Milton Ribeiro. Foto: Reprodução/Redes Sociais
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A sinalização dada pelo presidente Bolsonaro de que ‘concederá’ o reajuste do piso salarial de 33,23% a professores não arrefece a disputa em torno da pauta. Especialistas ouvidos por CartaCapital acusam o presidente de politizar o tema em benefício próprio e de dar um tom de ‘benesse’ a uma determinação prevista em lei.

Na quinta-feira 27, Bolsonaro escreveu em suas redes: “É com satisfação que anunciamos para os professores, da educação básica, um reajuste de 33,24% no piso salarial. Esse é o maior aumento já concedido, pelo Governo Federal, desde o surgimento da Lei do Piso”.

Na prática, a situação é outra. Até o anúncio, a Casa Civil, a Economia e a Educação buscavam negociar um reajuste bem menor, atrelado apenas à inflação, que seria de aproximadamente 7,5%. O percentual atenderia, sobretudo, prefeitos que questionam impactos nas finanças municipais.

O valor do piso do magistério é calculado com base na comparação do valor aluno-ano do Fundeb dos dois últimos anos. O valor aluno-ano é o mínimo estabelecido para repasse do fundo para cada matrícula na educação básica por ano. Em 2021, o valor aluno-ano foi de 4.462,83 reais. Em 2020, 3.349,56. A diferença percentual entre os dois valores é de 33,23%, o que eleva de 2.886 para 3.845 reais o piso salarial nacional da categoria.

As instituições que se manifestaram contra o reajuste, casos do próprio MEC, da Frente Nacional de Prefeitos e da Confederação Nacional de Municípios, questionam justamente a base do cálculo. A justificativa é de que o critério de reajuste anual do piso do magistério foi revogado com a Lei 14.113/2020, que regulamentou o novo Fundeb. A emenda constitucional 108/2020, que dispôs sobre os novos critérios de financiamento do fundo, previa que ‘lei específica disporá sobre o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério da educação básica pública’. O governo cogitou editar uma Medida Provisória para acolher a reivindicação, mas recuou.

O educador e cientista político Daniel Cara rebate a interpretação dada à Lei. “Existe um princípio institucional, jurídico, que é o da concordata. Uma lei que está estabelecida e não foi revogada permanece, ou seja, a Lei do Piso continua valendo mesmo no novo Fundeb. E eles questionam justamente isso, que com o novo Fundeb seria necessária uma nova lei para fazer valer o reajuste do piso”, explicou.

Para Cara, Bolsonaro aparentemente recuou da edição de uma MP por preferir não levar adiante o ‘custo político’ da decisão. No entanto, o educador pondera que uma nova investida do governo não está totalmente descartada.

“Juridicamente, Bolsonaro sabe que os prefeitos estão errados. Então, para evitar o desgaste sozinho, ele criou um ambiente em que prefeitos e governadores fossem pedir a ele a edição de uma medida provisória. Ele está aguardando que os governadores se pronunciem”, avalia o especialista, que ainda atrela a postura do presidente à disputa eleitoral de 2022.

“Bolsonaro sabe que vai perder a eleição. Como ele quer perder de pouco, ou de alguma forma milagrosa reverter a eleição, aparentemente desistiu da ideia de criar um ambiente ruim dentro do Palácio do Planalto.”

Mal-estar com prefeitos continua

Após a sinalização do governo federal ao reajuste previsto em lei, a CNM emitiu uma nota crítica em que menciona ‘grave insegurança jurídica’ em relação ao critério utilizado. Também aponta interesses políticos que se sobrepõem aos da educação. “Ao colocar em primeiro lugar uma disputa eleitoral, o Brasil caminha para jogar a educação pelo ralo. A CNM lamenta que recorrentemente ambições políticas se sobressaiam aos interesses e ao desenvolvimento do país”, diz um trecho do comunicado.

Ainda de acordo com a Confederação, o reajuste de 33,24% trará um impacto de 30,46 bilhões de reais, colocando os municípios em uma difícil situação fiscal e inviabilizando a gestão da educação no Brasil.

“Para se ter ideia do impacto, o repasse do Fundeb para este ano será de 226 milhões de reais. Com esse reajuste, estima-se que 90% dos recursos do Fundo sejam utilizados para cobrir gastos com pessoal.”

A CNM ainda recomendou que gestores municipais promovam o reajuste com base no índice inflacionário até que novas informações sejam fornecidas pelo governo federal.

A Frente Nacional de Prefeitos também se manifestou, afirmando que os cofres públicos não suportam o reajuste previsto em lei.

“Prefeitas e prefeitos se empenham pela valorização do magistério e defendem que os professores merecem um digno reajuste salarial, assim como os profissionais da área da saúde, da segurança e de todas as demais categorias que compõem o funcionalismo público”, diz o documento. “No entanto, é preciso governar combinando sensibilidade social e responsabilidade fiscal. As finanças locais, infelizmente, não suportam reajustes excepcionais no cenário de incertezas que o Brasil enfrenta.”

A FNP também cita ‘inseguranças jurídicas’ e considera a recuperação econômica de 2021 atípica frente ao cenário da pandemia, o que inviabilizaria a referência para o reajuste do piso.

“A recuperação da atividade econômica, frente a queda de 2020, combinada à aceleração inflacionária para um patamar de dois dígitos, fez com que a arrecadação tributária, de 2021, apresentasse um desempenho ‘excepcional’. Trata-se de um resultado obtido em função do momento atípico da pandemia. Justamente por isso não se pode tomar esta variação extraordinária como referência para o reajuste do piso, pois há baixíssima possibilidade desse desempenho da receita se repetir no médio prazo”, acrescenta o comunicado.

Ao final, a Frente lembra que os reajustes, embora normatizados pelo governo federal, são pagos, praticamente na sua totalidade, com recursos dos cofres de estados e municípios.

“Diferentemente da União, os entes subnacionais não podem se endividar para pagar salários. O reajuste de 33,24% no piso desequilibrará as contas públicas, podendo levar ao colapso nos serviços essenciais, à inadimplência e a atrasos de salários”, finaliza.

Em entrevista à reportagem, a prefeita de Juiz de Fora, Margarida Salomão, também vice presidente da FNP para a área de Direitos Humanos, contemporizou a manifestação do coletivo ao defender o pagamento imediato do piso salarial, resolvidas pendências jurídicas.

“O Piso Nacional do Magistério é uma importantíssima conquista da sociedade brasileira, da qual é impensável desistir. Defendo o imediato pagamento do piso, dirimidas as pendências jurídicas que tornem viável a sua aplicação. Quero também ponderar o gigantesco impacto dessa decisão sobre as finanças municipais. Defendo que a União complemente o seu repasse, para que venhamos a garantir em todos os municípios e estados brasileiros a dignidade da remuneração do trabalho em educação e o avanço na qualidade desta condição imprescindível para o desenvolvimento brasileiro”, declarou.

Especialista afirma que piso salarial cabe no orçamento

Segundo Daniel Cara, não há justificativas para não praticar o reajuste do piso previsto em Lei. O especialista destaca um levantamento conduzido pela própria Frente Nacional de Prefeitos, no fim do ano passado, que identificou que pelo menos 81% dos municípios brasileiros não aplicaram os 25% da receita em educação, como obriga a Constituição. A estimativa apontou que ao menos 15 bilhões de reais deixaram de ser investidos na educação básica (infantil, fundamental e médio, de 0 a 17 anos) desde o início da pandemia.

“É uma grande contradição, pois eles falam que o prejuízo com o reajuste será de 30 bilhões. Mas se eles deixaram de investir 15 bilhões e ainda receberão mais recursos, a conta não fecha”, critica o pesquisador, que leva em consideração o maior repasse garantido pelo novo Fundeb aos municípios. A lei prevê o aumento da complementação da União de 10% para 23%, de maneira gradativa, até 2026.

“Vai chegar mais dinheiro aos municípios. O que os prefeitos não querem é que esse dinheiro seja vinculado ao piso, porque, com isso, terão menos espaço para fazer proselitismo como, por exemplo, contratar outros profissionais com verbas do Fundeb, caso de psicólogos e assistentes sociais – que são importantes, mas que deveriam ser pagos com recursos de saúde e assistência, e não de educação”, acrescenta.

Em entrevista à reportagem, a diretora de finanças da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Rosilene Corrêa, critica a falta de prioridade à educação no País.

“A tendência no Brasil, sempre que as contas arrocham, é que os gestores olhem para as contas da educação, que sempre acaba ficando com aquilo que é possível. Essa é uma demonstração de que a educação não é respeitada. Ao sinal de qualquer dificuldade, ela vai para o sacrifício”, critica. “Veja, estamos falando de garantir o mínimo à educação, não estamos falando de super salários. Então sim, é uma decisão política que diz sobre como o País trata a educação.”

Um estudo realizado no ano passado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico mostrou que o Brasil tem o pior piso salarial para educação em uma lista com 40 países. Segundo o relatório Education at a Glance 2021, a média inicial do salário dos docentes no Brasil é de 13,9 mil dólares anuais. Os valores passam dos 20 mil dólares em países como Grécia, Colômbia e Chile; na Alemanha, passam dos 70 mil dólares. Em relação ao salário real, acrescido de pagamentos adicionais, o valor recebido por professores brasileiros também fica aquém da maioria dos países avaliados.

Rosilene ainda esclarece a composição dos atuais 33,23% previstos como reajuste.

“Aos que questionam o fato de ser o percentual mais alto da história, é importante dizer que é reflexo da economia que vivenciamos, com alta inflação. O ICMS é a principal fonte do Fundeb, então isso faz com que esse percentual seja mais alto. Mas esse aumento, na prática, nem se sustenta, já que a inflação come pelas beiradas. Deveríamos falar em recomposição, não em reajuste.”

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