Educação

Entre o medo da Covid e o de não entrar na faculdade, jovens abrem mão do Enem

Estudantes pedem novo adiamento do Exame e consideram não realizar a prova este ano; Vestibulares de 2021 registram alta de abstenções

Redação
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“Desde de março eu e meus avós estamos em casa. Eu saía para ir ao mercado e farmácia. Por conta dessas medidas de proteção, não tivemos Covid. Agora me vejo obrigado a ir numa prova, ficar cheio de gente numa sala e em um lugar longe”, desabafa o estudante paraense Adilson Junior de Campos Silva, de 20 anos. 

Seu temor, além de se contaminar, é transmitir o vírus para sua avó Maria Silva, de 60 anos, e seu avô José Campos, de 62 anos. Ambos têm hipertensão, uma das doenças do grupo de risco ao Covid. 

A ida para o local de prova depende de dois ônibus, um mototáxi e de 1h30 de trajeto. “Me sinto muito inseguro, mas dependo do Enem. É a única forma de entrar nas universidades públicas aqui do Pará”, conta. 

Em meio à pandemia, os vestibulares vem acumulando o maior número de abstenções. A primeira fase da prova da Unicamp, por exemplo, somou 10.719 abstenções – 4.690 a mais que na mesma fase do ano passado.

Caso essa tendência se repita com o Enem, romperá um ciclo virtuoso de aumento da presença dos estudantes. Na edição de 2019, o exame registrou a menor abstenção desde 2015. A maioria dos inscritos, aliás, já não está mais no Ensino Médio. No último exame, 58,7% já haviam concluído a etapa. Este ano, chegam a 65,6% dos estudantes com inscrição confirmada para o Enem Impresso e Digital. 

Adilson Junior de Campos, sua avó Maria Silva, 60 anos e seu avô José Campos, 62 anos. Foto: Arquivo pessoal

Junior estuda há três anos para conseguir uma vaga em Psicologia na Universidade Federal ou Estadual do Pará. Deixar de realizar o Exame esse ano significaria investir (e esperar) mais um ano para entrar na faculdade. Com a ajuda dos avós, ele tem conseguido se dedicar exclusivamente aos estudos.

“Eu seria a primeira pessoa da família a entrar na universidade, então isso me motiva muito, a mobilidade social é difícil nesse contexto, mas seria ainda pior se eu não fizesse nada.” 

‘É muita incerteza’

Amanda Fortunato Cruz, 20, Taboão da Serra. Foto: Arquivo pessoal

“É muita coisa na cabeça, o medo se amanhã se vai estar vivo para fazer uma prova, não saber se vai passar. Caso passe, não saber  se vai conseguir estudar na universidade”. O relato é da estudante Amanda Fortunato Cruz, de 20 anos, que mora em Taboão da Serra (SP). 

Assim como Junior, Amanda teve um Ensino Médio conturbado. Aos 17 anos, teve começar a trabalhar para ajudar em casa. A rotina intensa de estudo e o trabalho gerou um rendimento baixo na escola e a desestimulou a prestar o Enem em 2018, ano em que se formou

Superada a transição entre trabalho e estudo, a futura estudante de Relações Públicas (ou Jornalismo) estuda para a prova em casa. 

“No meu primeiro Enem, não tinha muita expectativa, sabia que não tinha muito preparo. Para este, consegui fazer um planejamento de estudo com as matérias que mais caem. Estava muito confiante antes da pandemia, mas agora eu penso que, se eu prestar, a probabilidade de não passar é muito alta”, conta. 

A mudança é motivada também pelo o aumento da carga de trabalho no segundo semestre de 2020, que por consequência fez ela diminuir o ritmo de estudo. Saindo de casa às 13h e chegando quase 23h, de segunda a domingo, só sobra tempo para estudar nos finais de semana. 

“Eu já não sei se vou prestar o Enem por conta dessa pandemia, estou meio indecisa, sabe? Depois de ver o diretor do Inep faleceu também, passam muitas coisas pela cabeça”. 

‘Não foi possível estudar’

Na aldeia indígena de Caramuru-Paraguaçu, localizada no município de Pau Brasil (BA), não foi possível ter uma rotina de estudo em 2020. É o que conta o estudante Fabrício Titiah de 20 anos da etnia Pataxó Hãhãhãi. “A nossa luta diária foi para manter nosso povo vivo, era fazer barreira sanitária, monitorar, pedir apoio para arrecadar álcool em gel, máscara e ajuda na alimentação. Sem conseguir o auxílio emergencial, todo mundo ficou muito preocupado, foi uma situação sufocante”. 

A primeira morte por Covid-19 na aldeia ocorreu em outubro. O cacique e líder indígena Gerson Pataxó disputava o quinto mandato como vereador em Pau Brasil. Ele completaria 58 anos na semana que antecede o Enem. “Quando aconteceu essa tragédia, foi difícil manter a barreira de proteção. Conseguimos controlar essa situação, mas agora volta a preocupar por conta da prova do Enem. Nosso medo é ter mais mortos”.

Os estudantes da aldeia costumam fazer a prova do Enem no município de Camacan, a 25km de distância de Pau Brasil. Em outras edições do exames, conta Fabrício, eles já demoraram até 3 horas no trajeto. Neste ano, sem o ônibus habitualmente cedido pela prefeitura, alguns estudantes desistiram de realizar o exame. 

No município de Pau Brasil, foram contabilizados até o dia 11 de janeiro 550 casos da Covid-19. Camacan, onde será realizada a prova, tem mais que o dobro de casos confirmados. São 1566 pessoas contaminadas. Levando em consideração os dados da prefeitura local que não são atualizados há mais de um mês.

Desde do início da pandemia, em março, 921 indígenas morreram por Covid-19, atingindo a população de 161 povos originários. Fabrício decidiu não fazer o Enem – esta seria a quinta tentativa. A sua meta era passar em medicina. Em 2018, ele decidiu cursar Ciências Biológicas na Universidade Estadual de Santa Cruz como alternativa para aumentar as chances de passar no curso que almeja. Desde de então, ele faz faculdade e continua realizando o Exame em paralelo. 

Judite Kariri-Sapuyá HãHãHãi, 68 anos, avó materna de Fabrício. Na imagem ela segura as sementes crioulas recebidas do povo Mayá, Guatemala. Foto: Fabrício Titiah

“Minhas avós sempre trabalharam com a medicina tradicional. Vi elas cuidando das pessoas e sempre fiquei admirado e pensando porque não, no futuro, eu poderia estar fazendo isso”, conta. 

Fabrício conta que, a cada ano, ao menos um estudante da aldeia entra no Ensino Superior. Já formados, são eles que tocam as aulas no Colégio Estadual Da Aldeia Indígena Caramuru Paraguaçu Pau Brasil.  “No início, os nossos anciãos que ajudavam essa juventude a se preparar para o vestibular. Agora, comprometer a saúde deles é perder a nossa identidade, comprometer a nossa história. A ancestralidade é o que está movendo não só eu, mas toda a comunidade nesse momento, é o que nos dá chão”. 

Adoecimento

 “A experiência do adoecimento mental diferenciada em relação aos aspectos raciais e de gênero, por exemplo. A trajetória de estudantes negros, indígenas no vestibular é vivenciada de outra forma. Vários elementos do racismo estrutural impactam a saúde mental. As violências cotidianas interferem  como ele se vê na sociedade e por sua vez, afetam no nível de ansiedade e o desempenho na prova”. O apontamento é de Áquila Bruno Miranda, psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Educação e especialista em Saúde da Família. 

O medo do fracasso e de errar na escolha profissional, completa, marcam também a trajetória de pessoas brancas, em especial as mais pobres. “A expectativa da família e a possibilidade de estudar em uma universidade pública aumentam a ansiedade”. 

Mariana Ferreira Cardoso, no canto esquerdo à frente. Sua mãe, Regina Márcia Tiago Ferreira, 50, à direita, e sua esposa Thays Pereira Bezerra, 28, à esquerda. Foto: Arquivo pessoal

Foi o que aconteceu para Mariana Ferreira Cardoso, de 25 anos, moradora de Três Lagoas (MT). Com 17 anos, ela passou para Farmácia na Universidade Federal de Mato Grosso, onde passou sete anos. 

Agora, pretende cursar Direito – e a bolsa pelo Enem é a única opção. Mas, grávida de quatro meses, Mariana ainda não sabe se vai fazer a prova. “Fico bastante preocupada de estar em um local com outras pessoas, poder fazer mal para o bebê. A pandemia me abalou bastante e eu já estava cogitando não fazer mais, então, acabei relaxando nos estudos”, conta. 

Em Figueira, no Paraná, se tornar mãe e ver a filha tentando acessar o Ensino Superior foi que moveu Alda Ferreira da Silva, mãe solo de 44 anos, a estudar para o Enem de 2020. A filha Bruna Leticia da Silva, de 21 anos, presta a prova há três anos para cursar Psicologia. 

Bruna passou para Direito em um município vizinho em 2018, mas os custos de alimentação e transporte ficaram pesados para a renda da família. Vivendo com menos de um salário mínimo do trabalho da mãe como empregada doméstica e da ajuda financeira incerta do pai, não foi possível continuar o curso.

Bruna Letícia da Silva, 21 anos, e sua mãe, Alda Ferreira da Silva, 44 anos. Foto: Arquivo pessoal

A saída para permanecer estudando veio no curso profissionalizante de Magistério. Ele é realizado no próprio bairro e a ajudaria também para os estudos do Enem. Completando um ano de curso, a pandemia iniciou e as aulas presenciais foram suspensas. Bruna precisou fechar a matrícula. “Eu tive uma depressão bem profunda em 2018 e agora eu tinha acabado de sair dela, estava feliz lá na escola fazendo o magistério, aí você pensa ‘nossa, agora que parece que era pra ser, acontece isso’, é muito azar, sabe?”.

Ela e a mãe iriam prestar o Enem este ano, mas com o aumento no número de casos de Covid-19 também repensam a realização do Exame. “Querendo ou não a gente precisa do estudo, porque se até quem tem, não está conseguindo emprego. É muito complicado”. 

O futuro dos futuros profissionais

De acordo com o psicólogo Lucian da Silva Barros, mestre em Educação, o aumento da ansiedade é fruto de uma expectativa normal em relação a um momento importante na vida do aluno, e que também é resultado de anos de pressão.

 

“Em época de vestibular as pessoas falam de exercícios e de como relaxar, mas não se esclarece o que causa essa pressão, essa cobrança por um desempenho excelente”, aponta

O estudo “Juventude e Pandemia do Coronavírus” mostrou que 49% dos estudantes entrevistados pensaram em deixar de fazer o Enem 2020 e 67% não estavam conseguindo estudar para o exame. 

Esse desnivelamento de condições para estudar, em conjunto com a pandemia levou ao primeiro adiamento do Enem. O segundo pedido feito pela Defensoria Pública para a Justiça Federal neste mês foi negado duas vezes. Inep alegou que o adiamento “é tirar dos estudantes o direito à educação superior”.

A campanha feita para o Exame no ano passado também mencionava: “imagine a geração de profissionais perdida”. Mas contraria a própria divulgação, esse ano o Sistema de Seleção Unificada (SISU) que oferta vagas para universidades públicas e federais está com 1.667 vagas a menos que na edição do programa no ano passado. 

O número que pode parecer pouco em relação ao total de 235.461 vagas ofertadas, seria mais que o suficiente para colocar na universidade: 996 alunos de Roraima com 20 anos e todos os participantes com mais de 60 anos de Pernambuco, Alagoas, Acre, Tocantins e Roraima que se inscreveram para a edição de 2019 do Exame, e ainda assim restariam sete vagas. 

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