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Dicionário repaginado

Com palavras criadas a todo instante por conversas do dia a dia e tecnologias, entenda como gírias e novas expressões vão parar entre verbetes

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Um falante pouco escolarizado chega a conhecer mil palavras Dicionario
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Quantas palavras tem a língua portuguesa? É impossível saber ao certo, mas as estimativas variam entre 200 mil e 600 mil. Diante de tamanha imprecisão, alguém poderia sugerir: ora, basta contar o número de verbetes do dicionário!

Infelizmente, esse procedimento não daria certo porque diferentes títulos contêm quantidades variáveis de vocábulos e também porque apenas uma pequena parcela das palavras da língua está registrada neles. Parece estranho? Pois não é.

Em primeiro lugar, seja numa conversa de botequim ou no âmbito do comércio, da ciência ou da tecnologia, palavras são criadas a todo instante, da gíria adolescente ao termo técnico. É em parte por isso que se torna impossível estabelecer com precisão o número de termos da língua.

Leia atividade didática de Língua Portuguesa baseada neste texto

Expectativa de aprendizagem: Familiarizar-se com o dicionário; estabelecer relações de significado entre palavras; examinar em textos o uso do vocabulário

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Retomar contato de alunos com dicionários evita a leitura instrumental e estimula a refletir sobre a variação linguística

1) Debate de sentidos
Leve um dicionário à sala de aula e/ou peça para cada aluno levar um. (É, por sinal, uma boa oportunidade para induzir os estudantes a comprarem um para si.) A seguir, distribua aos alunos um texto de atualidades – matérias jornalísticas extraídas de revistas semanais de informação, por exemplo, costumam ser bem redigidas e ter vocabulário rico – e faça-os sublinharem as palavras desconhecidas. A partir daí, peça-lhes que busquem no dicionário o significado dessas palavras. Como a maioria delas é polissêmica, isto é, tem várias acepções, e muitas são empregadas em sentido conotativo, é possível discutir a polissemia de cada termo e a acepção efetivamente usada no texto. No caso dos usos conotativos, é possível também discutir figuras de linguagem como metáfora e metonímia.

2) Fale com eles
Escolha um texto dirigido ao público jovem (como os de revistas para adolescentes) e pince nele palavras típicas do vocabulário dessa faixa etária. Pergunte aos alunos o que significam (pode-se mesmo fazer um debate em sala de aula sobre os possíveis significados) e, a seguir, com o dicionário Aurélio Júnior em mãos, cheque as definições dadas para ver o quanto elas coincidem ou não com as dos alunos. Ainda nesse texto, destaque palavras tradicionais que ganharam novos significados, como “baixar”, “ficar” e “xaveco”. Discuta como esses novos significados surgiram: por exemplo, explicando que “baixar” no sentido informático é decalque (tradução) do inglês download, que “xaveco” (paquera) é palavra antiga, de origem árabe, com significados que vão de embarcação à mulher feia, passando por chantagem, safadeza, dinheiro ganho e não retirado, e assim por diante.

3) Da gíria à norma culta
Como muitos jovens tendem a explicar o significado de um termo de gíria com outras gírias, é possível partir das próprias definições dadas pelos alunos para chegar a uma explicação do significado formada apenas com palavras da norma culta. Este exercício pode servir, inclusive, para apresentar aos estudantes o fenômeno da variação linguística, mostrando-lhes as várias maneiras de dizer a mesma coisa conforme as circunstâncias comunicacionais em que se está inserido. Com isso se pode, ao mesmo tempo, iniciar desde logo o combate ao preconceito linguístico e mostrar a importância de dominar a norma padrão do idioma.

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Mas, além disso, uma palavra só é dicionarizada quando se tem certeza de que ela realmente já se integrou ao idioma, isto é, está incorporada aos hábitos linguísticos dos falantes. Isso porque grande parte das palavras criadas no dia a dia –especialmente as gírias – desaparece após algum tempo sem deixar vestígios.

Em segundo lugar, existem dois tipos de palavras: as que todos ou que parcela considerável dos falantes usa e aquelas utilizadas por comunidades restritas, como é o caso de termos ultraespecializados (e não me refiro apenas ao jargão técnico-científico: qualquer atividade humana, do surfe à criação de gado, tem palavras de uso exclusivo).

Com um vocabulário básico de cerca de mil palavras, mais o domínio da gramática, é possível falar um idioma. Durante milênios, enquanto a espécie humana viveu em tribos nômades, sem qualquer registro escrito, o léxico permaneceu nesse patamar. (Ainda hoje, línguas de povos tribais têm, no máximo, por volta de 1,5 mil palavras.)

Aliás, um milhar de vocábulos é o repertório médio de um falante pouco escolarizado dos dias atuais. Estima-se que um indivíduo com instrução superior e boa leitura chegue a conhecer até 5 mil palavras (mesmo que não use todas em sua fala). Pessoas extremamente cultas, como foi Rui Barbosa, podem dominar até 10 mil. Ainda assim, é uma fração bem pequena da totalidade do léxico.

O grego e o latim clássicos contavam, no século V de nossa era, com cerca de 50 mil palavras. Essa era também a extensão aproximada do léxico das línguas europeias no século XVI.

O trabalho e o vocabulário
No mundo greco-romano havia por volta de 50 profissões e na Europa renascentista, cerca de uma centena delas. Na França do século XIX, o filósofo Auguste Comte relatava a existência de 130 profissões, ao passo que, hoje, levantamentos do Ministério do Trabalho dão conta de mais de 30 mil atividades.

Essa assustadora diversificação ocorrida no último século trouxe como consequência a hipertrofia do léxico das línguas contemporâneas – fenômeno típico das sociedades pós-industriais, extremamente heterogêneas, nas quais o saber acumulado, cada vez maior, é compartilhado por cada vez menos indivíduos.

Como resultado, uma parcela diminuta do léxico é conhecida de todos, outra menor ainda é partilhada apenas pelos falantes altamente escolarizados, enquanto grandes contingentes de palavras são de domínio exclusivo de certos grupos sociais ou profissionais. Essas terminologias são como “códigos secretos” que quem não é iniciado não compreende.

Por essa razão, os dicionaristas somente abonam termos que estejam em circulação no meio social, isto é, sejam de uso comum ou pertençam a alguma terminologia suficientemente difundida, como a da informática e a da medicina. Também entram palavras de pouco uso na atualidade, mas que, no passado, tiveram alta frequência, como “madeixa”, “tílburi” e “redingote”, necessárias à compreensão de clássicos da literatura.

Quando se trata de palavra relativamente nova, como “mensalão” ou “tuitar”, os dicionaristas podem ficar em dúvida quanto à conveniência da abonação. Por isso, alguns dicionários registram tais verbetes e outros não.

Além disso, cada dicionário tem um propósito diferente e destina-se a um público bem delimitado. Quantas e quais palavras entrarão em determinada obra é uma decisão que deve levar em conta esses parâmetros. É por isso que há tanta variação na extensão e abrangência dos diferentes léxicos disponíveis no mercado. Vocabulários especializados, dirigidos a profissionais de uma determinada área, trazem apenas os termos técnicos que interessam a esses profissionais. Dicionários de bolso, por seu pequeno tamanho, incluem apenas as palavras de uso mais comum, deixando de fora termos mais específicos. Dicionários escolares e aqueles destinados ao leitor jovem costumam dar mais ênfase a vocábulos com maior probabilidade de incidência nos discursos desse tipo de público.

É o caso do Aurélio Júnior, lançado no ano passado pela Editora Positivo. O novo dicionário, que, como o título diz, remete ao universo infantojuvenil, incluiu entre seus 30 mil verbetes palavras do momento como “bullying” e “periguete”, além de novas acepções para velhas palavras, como “baixar” (receber arquivos da internet) e “ficar” (trocar carinhos por um tempo sem compromisso de namoro). A bem da verdade, o foco principal desse dicionário talvez nem seja o jovem, já bem familiarizado com esses termos, mas o adulto que deseja compreender o que ele diz.

Seja como for, a organizadora do volume, Valéria Zelik, incorporou vocábulos que já são, sem dúvida, de uso corrente, e não só pelos mais jovens: “bullying” está até em documentos do Ministério da Educação, hoje em dia, todo mundo “baixa” alguma coisa da internet e, não raro, alguma personagem de telenovela é identificada como “periguete”.

Para aqueles que têm algum preconceito com gírias ou termos da moda, é preciso lembrar que muitos vocábulos hoje considerados eruditos e até arcaicos, como “breca”, “dândi”, “maçada”, “mancheia”, “pinoia” e “punhado”, eram expressões populares em séculos passados. A partir do momento em que foram empregados por grandes nomes da literatura, ganharam salvo-conduto para entrar nos dicionários. Aliás, o emprego de uma palavra em veículo de grande influência sobre as massas, como foi no passado o romance e é hoje a televisão, contribui bastante para a sua difusão e, por conseguinte, sua incorporação aos dicionários.

* Por Aldo Bizzocchi é doutor em Linguística pela USP, com pós-doutorado pela Uerj

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