Educação

Culturas lúdicas em áreas ribeirinhas

Mitos e costumes ancestrais se misturam nos jogos de crianças que fazem de florestas e matas palcos para o faz de conta

Crianças brincam de roda
Nas comunidades Roda
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Pará, Amazonas, Acre, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Vale do Jequitinhonha, Goiás… Em que recanto do Brasil não encontramos crianças a brincar? Moradoras de comunidades mais isoladas – do ponto de vista de quem vive nos grandes centros urbanos –, elas detêm culturas lúdicas absolutamente ignoradas e desconhecidas pela grande maioria de nós.

A não ser por alguns comprometidos pesquisadores que atravessam florestas, trilhas, riachos e, embrenhando-se junto a essas comunidades para conhecer e reconhecer sua diversidade cultural e suas infâncias. E quanto elas têm nos ensinado! Antes de tudo, a poder olhar para outras crianças, reconhecer suas singularidades e a riqueza dos seus cotidianos lúdicos.

As brincadeiras das crianças quilombolas, ribeirinhas, de comunidades indígenas e tantas outras, revelam não somente culturas particulares, mas um universo permeado de mitos, costumes ancestrais dos grupos nos quais nascem e se desenvolvem e, é claro, absolutamente conectado com a natureza e toda a beleza, possibilidades e mistérios que a mesma esconde e revela.

Confira atividade didática para a Educação Infantil sobre brincadeiras ribeirinhas

Expectativas de aprendizagem: Conhecer brincadeiras de diferentes regiões; Aperfeiçoar a maneira de interagir com parceiros nas brincadeiras

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Expressões, características do entorno e práticas regionais fomentam atividades criativas e intervenções dos brincantes

Região Centro-Oeste – Porto da Manga (Corumbá)

Tibancada
Há na beira dos rios, na maioria das casas, uma espécie de pontezinha onde se lava roupa. A maioria dos moradores a chama de “batedor” e as crianças, de tibancada. É ali que elas brincam de trampolim.

Região Norte – Cacoal (Rondônia)

Ariah Pexih
A brincadeira é feita em grupo, na água. Os participantes pegam (com a ponta dos dedos indicador e polegar) um na parte de cima da mão do outro. Eles formam, assim, uma espécie de “torre” com as mãos empilhadas.
Todos balançam a “torre” de mãos para cima e para baixo e cantam várias vezes: “ariah pexih, ariah pexih, ariah pexih”. (Em tupi-mondé, “ariah pexih” quer dizer “pé de galo”. É a língua falada pelo povo indígena suruí.) Quando o grupo para de cantar, todos se afundam na água rapidamente.
O jogo tem o potencial de trabalhar ritmo, musicalidade, coordenação motora, destreza e percepção corporal, sempre em grupo, trazendo elementos e vocabulário da cultura indígena local.

Região Sul – (RS)

Galinho de Osso
Com varetas de taquara, madeira ou galhos, pedras e outros materiais encontrados pelo terreiro, as crianças constroem em “sua estância” as benfeitorias correspondentes: invernadas, potreiros, piquete, mangueira, butes, banheiros de gado etc. Juntam ossos de animais usados para a alimentação das casas ou mortos no campo (ovelhas, bois, cavalos) e os limpam e purificam por meio do sol e da chuva. Acrescentam-se sabugos de milho, sementes de alguns vegetais, guampas e todo o material achado nos monturos que lhes possam servir à imaginação.

Cada ossinho, semente ou objeto representa um tipo de animal, por isso cada participante recolhe a maior quantidade possível. Assim, torna-se proprietário de grande número de bois, touros, vacas, terneiros, cavalos, petiscos, ovelhas, capões, carneiros, cordeiros… Os peões estão representados por ossos, sabugos de milho ou qualquer outro objeto. Há também carretas, carroças, charretes e/ou “aranhas”.

O menino gaúcho, com outros “estrangeiros”, seus vizinhos, comercia, vende ou compra tropas. Para rodeio, banha o gado, vacina, descorna. Executa grandes marcações e castrações. Doma seus cavalos, esquila (tosquia) suas ovelhas, carreteia e tropeia. Nada escapa à sua fantasia e, assim, se prepara para assumir o seu lugar de adulto na futura vida campineira.
A simbolização desses ossinhos é imensamente variada. Na mesma região difere de zona para zona. Dessa maneira, não podemos emprestar a cada ossinho um símbolo generalizado. Ele muda de acordo com o grupo de meninos vizinhos e “proprietários de estâncias”. Arame, barbante, tentos etc, servem para os aramados (cercas) e outras “benfeitorias”.

Região Sudeste – Araçuaí (MG)

Farinhada
As crianças formam uma roda e uma delas fica no centro, segurando uma peneira. Ela canta a música abaixo, girando a peneira, substituindo o nome “João” na música pelo nome de alguém da roda. O segundo que entrar chama uma terceira criança, e assim por diante. No final, todo mundo acaba “peneirando” no meio da roda. Brincadeira cantada, trabalha, além do ritmo, as profissões, o vocabulário, as ações e a cultura e os costumes locais.

Vou fazer uma farinhada
Muita gente eu vou chamar (bis)
Só quem gosta de farinha
Pode peneirar aqui (bis)
Vou chamar o João
Para peneirar aqui (bis).

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Nesses labirintos paisagísticos, embrenhados em florestas, matas, morros e tantos outros esconderijos, as crianças das diversas comunidades, seus valores e suas culturas, ocultam tesouros por nós desconhecidos.

Suas brincadeiras dizem-nos abertamente do nosso “analfabetismo lúdico”. E assim o convite é para adentrarmos um pouco nesses universos, conhecermos e aprendermos a brincar com o desconhecido, abrir espaço para as crianças serem nossos mestres e lermos, nas entrelinhas, o significado dos seus brincares.

Confira Temas de Aula para a Educação Infantil 

Nesses territórios elas se transformam em donas de um saber que nos escapa: dominam tanto a terra que pisam, as árvores que escalam com seus hábeis pezinhos descalços, o curso do rio onde a brincadeira vira festa, os bichos que aparecem e desaparecem tornando-se parceiros. Os códigos que dominam, tanto em relação ao vínculo com a natureza quanto à transformação dela na criação de complexos brinquedos, têm suas origens em regras e valores absolutamente particulares das comunidades.

Um estudo realizado pelo psicoterapeuta Roberto Gambini com sonhos de crianças de uma comunidade indígena revelou que, hoje, elas vêm perdendo, nesse caldo de vivências multiculturais em que estão inseridas, muitos dos valores das culturas dos seus povos ancestrais por estes não estarem mais tão conectados com os mitos e as histórias, e pela influência produzida pela mídia nos seus cotidianos.

As línguas faladas dentro dessa diversidade de comunidades têm sido objeto de recolha e estudo de alguns sensíveis pesquisadores. No âmbito do brincar, Tião Rocha, Ângela Nunes, Clarice Cohn, Lídia Hortélio, Renata Meirelles, Lucilene Silva, alguns educadores do Primeira Infância Melhor no Rio Grande do Sul, entre outros, têm contribuído para desbravar essas culturas lúdicas infantis e trazê-las para a interlocução de crianças e educadores de outros territórios.

Brincadeiras ribeirinhas de diversas regiões do País

As crianças estão tão conectadas e integradas à natureza que seus brinquedos “nascem” das árvores, da terra, dos rios, dos mitos e costumes, por meio da sua imaginação, seus corpos e os ensinamentos dos pais e avós. Barquinhos, casinhas, piões, espingardas, petecas e faz de conta que reproduzem suas vidas e o universo adulto e contam quem elas são.

Rodas e cantigas em que crianças e adultos, juntos e muito à vontade, criam ritos e ritmos na vida desses brincantes. Galhos de árvores, troncos, bichos, milho, sementes, linhas, elásticos, tampinhas de garrafa, caixas de fósforos, ferros velhos, pedras, barbantes, latinhas, chinelos de borracha e faquinhas, isopor, miriti, madeiras, cortiças e muita habilidade e imaginação: é assim que crianças das inúmeras comunidades ribeirinhas constroem seus brinquedos e inventam suas brincadeiras.

* Adriana Friedmann é educadora, doutora em Antropologia e co-fundadora da Aliança pela Infância

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