Educação

Como a perseguição e censura bolsonaristas culminaram na demissão de um professor em Curitiba

Os casos de perseguição docente tem piorado no contexto das eleições. O pesquisador Fernando Penna reflete sobre como a ameaça à liberdade de cátedra prejudica toda a sociedade

Sala de aula vazia||
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Há pouco mais de um mês, Josué* passou a fazer parte da legião de quase 10 milhões de brasileiros que sem emprego.

O professor de História foi demitido, sem explicações, de uma escola tradicional de classe média alta em Curitiba. Mas os episódios que antecederam o desligamento, porém, deixam poucas dúvidas sobre o motivo real: censura e perseguição.

Desde 2020, o docente vem sendo questionado pela gestão da escola e por familiares de estudantes. Em quatro episódios, teve a sua conduta e a abordagem de fatos históricos postas em xeque por visões particulares, que não remetem à Ciência ou a qualquer pacto social e histórico.

“O que eu sofri foi censura. Estamos sendo violados diariamente em nosso direito constitucional da liberdade de ensinar”, lamenta. “O ensino de História passa necessariamente por relacionar o passado ao presente”, defende o professor, que leciona há 13 anos e atuava na escola há 8 anos.

CartaCapital conversou em sigilo com o educador – por temor de que a exposiçao dificulte uma futura recolocação no mercado de trabalho. Confira os principais trechos da conversa.

Dia da consciência negra

“Era 20 de novembro de 2020, e eu dava uma aula online sobre consciência negra. Fiz uma abordagem do tema a partir de músicas e sonoridades afrobrasileiras.

Até que um estudante perguntou pra mim por que não havia o dia da consciência branca.

Eu já vi má intenção naquele posicionamento. Disse a ele que não iria responder, apenas continuar a aula.

Até que a mãe dele entrou na sala virtual questionando o porquê de não responder ao filho dela, o porquê de eu achar ultrajante a pergunta, sendo que ela também defendia o mesmo posicionamento.

Eu falei que, em primeiro lugar, ela não tinha o direito de invadir um espaço de sala de aula, ainda que virtual, e basicamente expliquei a ela que não tem dia da consciência branca porque os africanos, afrodescendentes ficaram mais de 300 anos escravizados no Brasil e que esse dia seria uma espécie de redenção que se faz a toda essa história terrível.”

Após o ocorrido, a mãe do estudante encaminhou uma reclamação à escola pedindo a demissão do professor.

Proibido de falar sobre vacinas

Em 2021, antes de entrarmos no modelo híbrido, atendendo parte dos alunos presencialmente e parte online, a gestão da escola fez uma reunião com todos os professores e disse para todo mundo: ‘É proibido falar em vacina em sala de aula’.

A justificativa era de que isso não era problema nosso, que as pessoas que quisessem se vacinar o fariam, bem como as que não quisessem, e que ninguém era obrigado a nada.

Eu reagi à decisão, preocupado, e falei, quando tiver que falar sobre Revolta da Vacina, o que eu faço?

Aí teve um momento em sala de aula que eu estava trabalhando gripe espanhola, e trouxe uma manchete da Gazeta do Rio de Janeiro, de 1918, assim: ‘O Rio de Janeiro parece um hospital, as pessoas estão morrendo e o Governo está preguiçoso para lidar com a gripe espanhola’.

Quando eu mostrei essa imagem, os alunos falaram: mas parece que a gente está vendo o jornal de hoje em dia, professor. E provoquei uma reflexão dizendo que estávamos diante de um passado que não havia passado por completo, dado o descaso atual com as doenças e outros problemas.

Aí eu falei: “É um passado que não passa, e o passado que não passa, neste exato momento, é o o descaso do governo para com as doenças para com os problemas.”

Houve uma reclamação. A escola me chamou e disse que eu não podia trabalhar dessa forma. Que, embora eu tivesse levado material de referência,  minha abordagem teria sido errada. Ouvi que eu não podia falar sobre a forma como o governo estava trabalhando em 1918 e fazer um paralelo com 2021. A sugestão era que minha abordagem fosse: “Os jornalistas criticavam o governo em 1918 assim como criticam em 2021”. A gestão escolar claramente tentou colocar a culpa na imprensa e não no governo.

7 de Setembro

Antes do feriado de 7 de Setembro, em 2021, eu fiz uma uma aula sobre patriotismo, passei o Hino da Independência para os alunos. Falei sobre patriotismo, analisamos a etimologia, de onde vem a palavra, o que significa ser ou não ser patriota. A discussão ia acontecendo até que uma mãe ligou na escola e fez uma reclamação de que eu estava falando besteira sobre patriotismo, que quem não morava no país não era patriota, invertendo o que eu falei. A direção me chamou e falou que eu não podia dar a minha opinião. Eu justifiquei que não se tratava da minha opinião, mas uma constatação, uma análise científica que eu estava fazendo junto com os alunos. A abordagem de dizer que estamos dando uma simples opinião já é uma forma de reduzir o nosso conhecimento.

Veio uma advertência por escrito para eu assinar, mas eu não assinei. No outro dia, tive outra por desacato, por não ter assinado a primeira advertência.  Eu disse que meu papel era ensinar história e que eles estavam me censurando em sala de aula. Eu disse a ela que eles estavam querendo construir uma justa causa para mim.

Integralismo

Já este ano, com as aulas presenciais retomadas, eu estava dando uma aula numa turma de 9º ano do Ensino Fundamental sobre integralismo, que faz parte do conteúdo que a gente tem que trabalhar em sala, e coloquei um cartaz sobre o tema, a partir de uma fonte histórica, da década de 1930, que continha a frase: Deus, pátria e família. Um aluno ergueu o dedo e falou: ‘professor, você está querendo dizer que o Bolsonaro é fascista?’

Eu falei, olha, não posso afirmar que o Bolsonaro é fascista, mas o que posso afirmar e que você já conseguiu identificar é que o Bolsonaro parte de uma premissa fascista, de uma ideia que surgiu em um movimento fascista. Veja, o que eu estava fazendo era historicizar a frase, o discurso, que passa pela compreensão histórica.

Pois bem, os pais ligaram na escola, reclamaram e mais uma vez fui chamado pela gestão da escola, que disse: Não é possível você fazer isso, aqui todo mundo é bolsonarista, e você está proibido de citar o nome de Bolsonaro em sala de aula. Eles me falaram que eu  teria que seguir as regras e eu rebati que não as seguiria. “Isso não é regra, é censura”.

Duas semanas depois fui despedido e nem me explicaram o porquê.

Perseguição piorou no período eleitoral

O professor contou à reportagem que a situação de vigilância sobre os docentes piorou no contexto das eleições. “A gente percebe que a perseguição a professores, sobretudo os de História, vinha se fortalecendo desde 2014. Mas o nível que chegou agora em 2022, principalmente aqui em Curitiba… é pavoroso”.

O contexto, avalia ele, faz com que educadores recorram à autocensura para tentar preservar seus empregos e carreiras. “A forma como a gente coexiste nesse contexto é se autocensurando, o que é uma coisa muito grave mas que, de alguma forma, eu já havia internalizado”, coloca o docente, que diz ainda não ter se recuperado emocionalmente do caso. “Sua saúde mental vai sendo abalada.”

O doutor em educação, Fernando Penna, diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense reitera a importância de os casos serem avaliados fora de uma perspectiva pontual.

“Há um fenômeno maior, um estímulo a uma perseguição sistemática dos professores, algo que ganhou muita força em 2015/2016, o que muitos chamam de uma onda conservadora no campo educacional com duas iniciativas, o Escola sem Partido e a campanha antigênero, que usa o termo ‘ideologia de gênero’ como uma ferramenta de manipulação do pânico moral.”

O cenário, avalia, ganha projeção com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e adesão imediata da pauta por ele e seus apoiadores, que impulsionaram a apresentação de projetos legislativos pautando o cerceamento nas escolas. “O Escola sem Partido é indissociável do bolsonarismo. O primeiro projeto do Escola sem Partido no Rio de Janeiro foi de iniciativa do senador Flávio Bolsonaro (PL), o segundo pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos)”, relembra. Um levantamento feito no final de 2020 pela Frente Escola sem Mordaça contabilizou mais de 200 iniciativas visando censura à liberdade de cátedra apresentados nas câmaras municipais, assembleias estaduais, distrital e Congresso Nacional no Brasil.

Para além da gravidade de tentar cercear professores no cumprimento de temas curriculares, Penna chama a atenção para os riscos da conformação da autocensura, que causa prejuízos a toda a sociedade.

“Esse é um problema sério. O professor é um profissional. Ele não faz nada por acaso, ele tem uma formação profissional que orienta as escolhas, as opções metodológicas, pedagógicas que vai tomar frente aos alunos. Não existe uma fórmula única sobre como ensinar história, o que há são orientações gerais, mas é cada docente, em diálogo com a realidade dos estudantes,  que produz conhecimento histórico”, questiona, ao apontar consequências em escala para toda a sociedade. “Agora, se você não pode falar da realidade, como faz, como torna esse ensino significativo?”

*O nome do professor foi utilizado de maneira fictícia pela reportagem para não expor sua identidade.

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