Educação

Ciência contra a redução

Livro com artigos de pesquisadores da USP mostra por que 
a Academia é contra a redução da maioridade penal

Livro Ciência da Delinquência
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Se dependesse da pesquisa acadêmica feita pela Universidade de São Paulo (USP) e instituições parceiras, a redução da maioridade penal não estaria em discussão. Pelo contrário, estariam sendo cobrados os direitos dos adolescentes infratores. Para Roberto da Silva, organizador do livro Ciência da Delinquência, que reúne artigos de pesquisadores de diversas áreas sobre o tema, falta informação qualificada e a academia deveria ser mais ouvida sobre o assunto.

Professor titular da Faculdade de Educação da USP e principal orientador dos trabalhos reunidos, Silva afirma que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990, nunca foi respeitado. “As pessoas que propõem mudanças na lei são exatamente as que nunca tentaram cumpri-la para olharmos os resultados”, diz.

A obra resgata que o primeiro pedido de redução da maioridade penal aconteceu em 1993, após o caso “Champinha”. Na época, o assassinato de um casal de namorados na Região Metropolitana de São Paulo com a participação de um adolescente de 16 anos chocou a opinião pública, estimulada pela ampla cobertura da mídia.

De lá até o mais recente projeto parlamentar, de maio deste ano, foram 21 propostas, todas na esteira de casos que ocuparam espaço nos meios de comunicação. Dados dos pesquisadores mostram, porém, que a maioria dos internos é privada da liberdade por envolvimento com tráfico e danos a patrimônio. Apenas 0,9% deles foram internados por atos violentos que equivalem a crimes hediondos. “Curiosamente, os parlamentares parecem depositar absoluta confiança no que dizem os meios de comunicação, mas em nenhum momento recorrem às ciências e à pesquisa científica para fundamentar suas justificativas”, reclama Silva.

Ele destaca outras informações conhecidas em diferentes campos acadêmicos que deveriam ser consideradas pelos legisladores: a Psiquiatria não identifica características de psicopatia ou de sociopatia em adolescentes envolvidos em atos infracionais; a Psicologia refuta a ideia de que adolescentes sejam amorais, tenham falta de empatia ou sejam resistentes à criação de vínculos; a Pedagogia identifica que adolescentes são muito vulneráveis ao “processo de contaminação” pela cultura da violência, do crime e das práticas institucionais; e, finalmente, a História mostra que a adolescência é uma categoria nova, ainda não compreendida inteiramente pelas ciências.

O professor recorre ainda à Ciência Política para demonstrar que, periodicamente, culpa-se um subgrupo mais fragilizado pelas mazelas da sociedade. “Foi assim com o escravo no Brasil Colônia, o filho ilegítimo e a mãe solteira no Brasil Império, o vadio na Primeira República, o comunista durante o Regime Militar, o ‘trombadinha’ na década de 1970, o ‘aidético’ na década de 1980, e o adolescente depois da aprovação do ECA, em 1990”, exemplifica.

O livro, cujo nome completo é Ciência da Delinquência: O olhar da USP sobre o ato infracional, o infrator, as medidas socioeducativas e suas instituições, foi produzido a partir da pesquisa no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade, coordenado por Silva. Traz 16 artigos científicos e 10 relatos de estudantes da graduação que tiveram contato com adolescentes internos.

Por último, há estudos sobre a mudança da antiga Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (Febem) de São Paulo para Fundação Casa, em 2006. Nos anos seguintes à alteração de nome e de regimento, o total de internos caiu cerca de 40%. Isso ocorreu porque, antes, crianças em situação de rua também eram encaminhadas à instituição. Em poucos anos, porém, o número voltou a subir: passou de 16 mil, em 2009, para 33,8 mil, em 2014.

Na análise de Silva, o aumento deve-se, sobretudo, à ação de juízes do interior do estado, que fazem internações por uso de drogas. A decisão contraria a legislação, que enquadra o usuário como um problema de saúde pública, e não de polícia. “Os juízes alegam que são os promotores que requerem as internações e os promotores dizem que são pressionados pela classe política, pelos meios de comunicação e pela opinião pública. Os defensores públicos, por sua vez, quase nada conhecem da vida do adolescente, de sua família ou das condições em que vivem e acabam apenas por legitimar a aplicação da medida de internação”, conta.

Entre os organizadores complementares da obra está a diretora pedagógica do Instituto Paulo Freire, Francisca Pini, para quem é preciso olhar mais para a pessoa em vez de apenas para a infração. “O jovem que cometeu um ato infracional continua tendo as peculiaridades da idade, ele não deixa de ser adolescente.”

Responsável por um trabalho de formação com funcionários da Fundação Casa dentro da USP, ela destaca a institucionalização, responsável por dificultar o trabalho dos profissionais, conforme preconiza o ECA. “Fizemos um curso de 120 horas que deveria acabar em um artigo que reelaborasse a prática dessas pessoas. No entanto, percebemos que a maioria já teve formação adequada, a rotina da instituição é que não permite práticas de respeito aos direitos dos adolescentes”, afirma.

A diretora explica que o único direito que o adolescente infrator perde perante a lei é o de ir e vir. Portanto, a instituição deve proporcionar convivência, formação e educação que são garantidos a toda criança e adolescente. “A justificativa para a medida socioeducativa é possibilitar um novo projeto de vida, longe da violência. Em muitos casos ocorre o contrário, a institucionalização deixa marcas que segregam e só resta a criminalidade.”

Marcados
Os artigos selecionados para o livro demonstram que a história de vida dos adolescentes e a institucionalização dão pouco espaço para mudança. Professora da Universidade Federal de Tocantins e autora de um mestrado em Artes na USP sobre sua experiência com jogos teatrais na Fundação Casa, Karina Yamamoto dá um exemplo: “Ao propor uma brincadeira tradicional, eles participavam individualmente para ganhar, ainda que não houvesse prêmio. Se propunha duplas, competiam e buscavam alianças fortes”, comenta, explicando a dificuldade dos adolescentes de compreender o lúdico.

As marcas também aparecem no relato, presente no livro, acerca do programa que proporcionou aos estudantes da graduação a convivência com jovens infratores dentro da USP. O aluno do curso de Estatística, André Raz, que tinha uma experiência anterior com a Pastoral Carcerária, conta que identificou traços semelhantes entre os internos desde o primeiro encontro com os jovens infratores na universidade. “Por exemplo, o uso de senhor e senhora, pedir permissão para qualquer coisa e expressões como ‘o mundo lá dentro e mundo lá fora’, além da timidez e da introspecção, acredito eu, provenientes do contato social restrito.”

O psicólogo Celso Takashi Yokomiso, que fez doutorado na USP sobre o adoecimento psíquico em medidas socioeducativas de internação, fala sobre a dificuldade do trabalho psicológico e pedagógico no ambiente prisional. “Os educadores queixam-se do silêncio e do controle da palavra dentro dos centros socioeducativos e a equipe psicossocial sente-se sufocada por estratégias de intervenção que promovem violência e exclusão”, conta.

Segundo ele, o discurso dos adolescentes evidencia forte adesão às regras criminais, tomadas como “orientadoras das condutas” e necessárias para que os jovens se sintam pertencentes ao grupo. “Essa adesão assegura suas fronteiras, afastando-os dos demais grupos institucionais. Marca identidades e propósitos”, comenta.

Ao mesmo tempo, os agentes de apoio discriminam os internos em “recuperáveis” ou “irrecuperáveis” – esses últimos, também chamados de “estruturados”, deveriam ser excluídos das atividades para tornar a rotina possível. Os agentes também sustentam, segundo Yokomiso, que é necessário manter uma distância emocional com os adolescentes, o que, para o psicólogo, compromete todo o trabalho. “Os centros socioeducativos não devem afastar uns dos outros, mas aproximar, por meio da construção dos vínculos que, em última instância, são o próprio trabalho socioeducativo. Os jovens aprendem mais pelos exemplos do que pelas regras”, conclui.

Para o organizador do livro, as marcas da institucionalização tornam a internação negativa. Segundo outra pesquisa de Silva, em média, após seis meses – tempo da avaliação periódica da medida socioeducativa –, o adolescente já substituiu o conjunto de códigos, valores e símbolos que traz de casa pelos hábitos da unidade de internação. Isso significa mudanças na linguagem, na expressão corporal e nos próprios referenciais de conduta. “Depois de três anos de internação, tempo máximo permitido, o adolescente é reconhecido em qualquer circunstância pelos rótulos que leva. Isso dificulta a ambientação dele junto à família, à escola e ao trabalho”, explica.

Na opinião do pesquisador, é possível e desejável evitar internações se consideradas as evidências de que a pessoa em formação é extremamente moldável e permeável ao meio em que vive. A divisão dos internos por tipo de ato infracional não necessariamente é adequada. Segundo ele, jovens que cometeram homicídio, por exemplo, podem sofrer grandes danos se misturados com ladrões e traficantes que possuem redes de relações estruturadas. “A exposição à violência diária, à corrupção de todas as formas e à deterioração dos hábitos e costumes tem efeitos arrasadores. É um crime contra a humanidade submeter adolescentes em processo de formação do caráter, da personalidade e de suas diversas identidades a tais condições”, afirma. Para ele, essas condições caracterizam pena cruel e degradante proibida por tratados e convenções da ONU. “Tanto a redução da idade penal quanto o prolongamento do tempo de internação aumentariam significativamente esses danos.”

Isso não significa que os pesquisadores não apoiem medidas socioeducativas ou incentivem a impunidade. “Pode parecer paradoxal, mas todo ato infracional deveria resultar em medidas de semiliberdade ou liberdade assistida sob forte fiscalização e nunca internação”, afirma Silva, acrescentando o tratamento aos dependentes químicos. Para ele, esta é a oportunidade de dar a educação social que a maioria dos adolescentes não recebeu antes. “Se não fomos capazes de educá-los na infância e falhamos na adolescência, quem garante que teremos sucesso na juventude? O mais certo é que sejam punidos também depois de adultos com a passagem para o sistema penitenciário.”

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