Educação

África do Sul protesta contra monumentos coloniais

Protestos envolvendo monumentos coloniais são ponto de partida para discussão sobre os problemas e os desafios atuais do país

Remoção de monumento ligado ao passado imperialista do país
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Nos últimos anos, monumentos do período colonial têm sido alvo de protestos em vários países africanos. Na capital da Namíbia, Windhoek, a estátua equestre de um soldado alemão foi removida do espaço público no Natal de 2013. Da mesma forma, recentemente, uma estátua de Cecil Rhodes foi retirada na Cidade do Cabo, a capital legislativa da África do Sul.

A polêmica em torno da remoção da efígie do primeiro ministro da então Colônia do Cabo foi motivo de algumas charges de Zapiro, um dos mais importantes caricaturistas sul-africanos. Uma delas, publicada no Mail & Guardian de 10 de abril de 2015, sugere um “efeito dominó” da ação estudantil em prol da remoção dos ícones do colonialismo. Depois de Rhodes, segue a derrubada de Paul Kruger, da Rainha Vitória e de Jan van Riebeck.Desde a presença holandesa e da administração colonial de Jan van Riebeck, no século XVII, até a guerra anglo-bôer no alvorecer do século XX, quando o líder bôer Paul Kruger e a rainha britânica Vitória tiveram suas gentes envolvidas numa “guerra entre brancos”, as efígies do colonialismo (seja ele holandês, britânico ou bôer) incomodam as consciências daqueles que acusam a violência simbólica da supremacia branca de outrora. No entanto, ela ainda se faz presente nos espaços públicos, seja na forma de um monumento como o de Cecil Rhodes ou uma estátua equestre de Louis Botha.

A derrubada desses monumentos inscreve-se num processo de descolonização em muitas sociedades africanas. A mudança do nome de escolas e de outras instituições públicas, de praças, de ruas e de avenidas também faz parte desse movimento cívico que mobiliza a memória e a história coletiva em um contexto pós-colonial em várias cidades do continente africano.

Na África do Sul, alguns cidadãos consideram essas reivindicações “menores”, quando comparadas com outras questões prementes da sociedade pós-apartheid. A precariedade das escolas públicas, o número de crianças ainda fora delas, a qualificação e o plano de carreira dos professores da rede de ensino, as condições de acesso e permanência dos jovens nas universidades públicas, a política de ensino e de bolsas para estudantes são, entre outras, questões incontornáveis para o futuro da nação sul-africana.

Se a democratização do ensino parece ter sido uma prerrogativa do governo desde a Presidência de Nelson Mandela (quando a educação se tornou parte do Programa de Reconstrução e de Desenvolvimento), 20 anos depois os resultados têm sido parcos. Além das dificuldades com a escolarização e com a eventual formação de nível superior, tem-se ainda o desemprego. Os jovens formam um grupo vulnerável em relação à pobreza e ao desemprego. Variáveis como origem étnica e social e gênero podem ainda condicionar de forma diferenciada a inclusão/exclusão dos jovens.

Apesar de ser uma das primeiras economias do continente africano, a África do Sul apresenta uma forte desigualdade social. Sem dúvida, a desigualdade tem uma história que se confunde com a do apartheid. Se uma nova geração sul-africana já nasceu sob o signo da liberdade, a desigualdade social continua a aumentar e, por conseguinte, a solapar as bases da incipiente democracia naquele país.

A democratização da educação na África do Sul não significou uma educação igualitária. No romance da sul-africana Nadine Gordimer (Nobel de Literatura em 1991), intitulado O Melhor Tempo É o Presente (2012), um casal de classe média decide matricular seu filho numa escola particular. Trata-se de uma nova estratégia de mobilidade social para aqueles que já não acreditam mais no sistema público de ensino.

No livro, o casal depara-se com problemas e desafios emblemáticos, como, por exemplo, a convivência com a diversidade (étnica, sexual, religiosa), o cotidiano no subúrbio, a luta por um emprego, a violência urbana, a epidemia da Aids, a corrupção e os escândalos no seio do Congresso Nacional Africano, entre outras ocorrências.

A autora do livro trata dos preconceitos para além da dicotomia reducionista entre brancos e negros. Aborda as condições feminina, judaica, homossexual e dos estrangeiros em suas variantes enquanto alvos de deboches, desprezo, assédio e agressões. Cabe lembrar que o assédio e a violência sexual na sociedade contemporânea da África do Sul já foram tratados em outros romances. Para ficar num exemplo, o livro Desonra (1999), do escritor também sul-africano J. M. Coetzee (Nobel de Literatura em 2003).

Assim como na literatura, o reconhecimento e o direito das minorias étnicas, religiosas e sexuais também são reivindicados por artistas sul-africanos como Steve Cohen em suas performances em espaços públicos em várias cidades do mundo como Paris e Nova York.

Desde o fim do apartheid, a África do Sul tem passado por uma renovação em termos artísticos e culturais. As linguagens artísticas mantêm e inovam suas relações com a política. Artistas plásticos como Mbongeni Buthelezi, desenhistas como Zapiro, escritoras como Zoë Wicomb e Gcina Mhlophe, artistas performáticos como Steve Cohen e rappers como K. Jordan Forbes (vulgo AKA) permitem, com seus trabalhos, o conhecimento da realidade sul-africana, de seus problemas e dilemas.

Após duas décadas, a democracia na África do Sul enfrenta ainda dois sérios problemas de ordem política: a dificuldade de organização da sociedade civil e a corrupção no interior da política partidária. Em relação ao poder legislativo, o Parlamento sul-africano é bicameral, como no Brasil. A Assembleia Nacional contém 400 membros e o Conselho Nacional das Províncias, 90 membros. O número de parlamentares sul-africanos é próximo ao de deputados no Congresso brasileiro. Mas a população da África do Sul é de 53 milhões, enquanto a brasileira é quatro vezes maior. O PIB brasileiro é também, aproximadamente, quatro vezes superior ao sul-africano. Apesar da hipertrofia do Parlamento e dos elevados custos com sua manutenção, o mesmo apresenta algumas disfunções que comprometem a eficácia legislativa do regime democrático no país.

Nas últimas décadas houve a formação de uma nova elite política. O favoritismo e a corrupção condicionam o acesso a cargos públicos e, não raro, a ascensão social de grupos emergentes. No entanto, o Congresso Nacional Africano tem sofrido disputas internas, com alguns políticos abandonando o partido, enquanto outros foram expulsos. Após 20 anos, o desgaste político do CNA não decorre apenas da longa permanência na situação, mas também dos parcos resultados nos campos da saúde e da educação, assim como das taxas de desemprego e dos riscos da economia de mercado.

A discrepância entre a riqueza produzida, sua distribuição, os impostos arrecadados e os investimentos públicos tem forte impacto social, o que faz com que alguns clamem por reformas mais eficazes e de curto prazo. No poder desde as primeiras eleições “multirraciais”, o CNA perdeu alguns membros históricos, outros foram envolvidos em escândalos financeiros, políticos e sexuais. Cabe ainda ressaltar o caráter populista que assumiu o partido desde que Jacob Zuma assumiu a Presidência do país em 2009.

Numa caricatura de Damien Glez, o presidente sul-africano aparece como um camaleão sobre a bandeira nacional. A camuflagem do pequeno animal o protege. Jacob Zuma foi prisioneiro político durante o apartheid. Depois assumiu cargos políticos de importância no CNA e no governo. Em 2008, foi afastado da Vice-Presidência por estar supostamente envolvido em esquemas de corrupção. Antes de ser presidente da África do Sul, foi ainda alvo de acusações por supostamente aceitar propinas milionárias do tráfico de armas. Também foi parar no Tribunal por uma acusação de estupro. Nesse episódio, além de declarações machistas, Zuma afirmou que, após o ato sexual, ele teria se lavado bem para se proteger de uma eventual contaminação pelo HIV. Devido à gravidade da epidemia da Aids em toda a África austral e à sua interface com a banalização da violência sexual, as declarações de Jacob Zuma foram muito criticadas por vários grupos dentro do país e também em nível internacional.

Os gastos com festas para amigos e familiares e a compra de bens e artigos de luxo, além de aquisições e reformas de residências palacianas, contribuíram para o desgaste da imagem pessoal de Zuma, mas também afetou a reputação do próprio CNA, cuja representação tem diminuído.Na atual conjuntura sul-africana, os partidos rivalizam-se sem mais o cuidado de manter as bases da reconciliação tão cara nos primeiros anos da democratização do país. A utopia da sociedade “multirracial” foi sendo dissipada na última década. Apesar de a retórica do CNA não afinar às vezes pelo diapasão do liberalismo econômico, o governo busca ajustar a economia local ao mercado internacional.

Em termos de relações exteriores com os países vizinhos, as tensões de uma história recente se amenizaram. O passado em comum dos partidos políticos de orientação marxista, como MPLA, Swapo, Zanu, Frelimo e CNA, favorece algumas parcerias entre Angola, Namíbia, Zimbábue, Moçambique e África do Sul. Além disso, os países da África austral têm atraído investimentos e negócios com a China. Saídas da luta revolucionária contra a supremacia branca, as novas elites políticas souberam usar das benesses do Estado para o seu próprio proveito. Apesar do Estado Democrático de Direito, a sociedade sul-africana contemporânea não conseguiu realizar ainda os ideais da famosa Carta da Liberdade aprovada pelo Congresso do Povo, em 1955, ainda nos tempos do apartheid. Se o apartheid faz parte do passado sul-africano, a Carta da Liberdade ainda resta como um projeto futuro para a África do Sul.

*Professor de História da África na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Laboratório de Estudos de História da África (Lehaf). O autor agradece a gentileza dos caricaturistas Zapiro e Damien Glez por terem autorizado a reprodução de suas respectivas charges nas páginas de Carta na Escola.

Saiba Mais

O Melhor Tempo É o Presente, de Nadine Gordimer. Companhia das Letras, 2014.

Para consultar a Carta da Liberdade (Freedom Charter):
http://www.anc.org.za/show.php?id=72

Zapiro
http://www.zapiro.com

Damien Glez
http://www.glez.org

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Em sala/ África do Sul em cartum

Análise

1) Consulte o site Africa Cartoons e descubra os caricaturistas sul-africanos e seus trabalhos em jornais e revistas nacionais e internacionais. http://africacartoons.com/cartoonists/map/south-africa/

2) O Africa Cartoons possui um acervo com caricaturistas de quase todos os países africanos. Acesse o site e pesquise sobre os temas presentes nas caricaturas. Depois discuta com seus alunos: há temas recorrentes em países diferentes? Alguns deles têm similares na sociedade brasileira atual?

3) Pesquise sobre os trabalhos de músicos sul-africanos de projeção internacional, como Hugh Masekela e Kevin Volans e/ou de escritoras sul-africanas como Zoë Wicomb e Gcina Mhlophe.

4) Compare a situação político-partidária da África do Sul com a do Brasil e discuta com seus colegas sobre a relação entre sociedades “multiétnicas” e regimes democráticos.

5) Discuta sobre a liberdade de expressão e a importância dela para o trabalho dos caricaturistas em países como a África do Sul e o Brasil.

6) Na África do Sul, imigrantes de países vizinhos, como Zimbábue ou Moçambique, têm sido vítimas de atos violentos e xenófobos. A recente imigração de haitianos e africanos no Brasil tem sido tema polêmico na imprensa. Discuta sobre o xenofobismo e o racismo em sociedades “multiétnicas” como o Brasil e a África do Sul. [/box]

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