Educação

A profecia autorrealizável da Educação
de Jovens e Adultos

Modalidade tem demanda maior do que todos as salas de aula do Brasil juntas, mas realidade da oferta faz procura parecer pequena

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O sociólogo Robert Merton cunhou, em 1949, a expressão “profecia autorrealizável” para explicar como a previsão de que algo negativo acontecerá influencia as ações dos envolvidos e acaba fazendo com que o prognóstico se realize. O anúncio de que um banco vai quebrar, por exemplo, levaria todos os clientes a sacar seu saldo e a instituição à falência. A expressão foi emprestada por especialistas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) para explicar como a modalidade que tem o maior público-alvo do Brasil responde por apenas 10% do total de matrículas.

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Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 65 milhões de brasileiros acima de 15 anos não têm escolaridade ou não completaram o Ensino Fundamental. O número equivale a 45% de toda a população na faixa etária e constitui a maior parte do público para EJA.

Outros 22 milhões de adultos acima de 18 anos poderiam ainda ser matriculados nas classes de Ensino Médio. O contingente é tão grande que não caberia em todas as escolas públicas e privadas do Brasil, que somam juntas 50 milhões de vagas. O total de matrículas, no entanto cai sucessivamente há sete anos e passou de 4,5 milhões, em 2007, para menos de 3,8 milhões, em 2013.

Maria Clara Di Pierro, professora da Universidade de São Paulo (USP) e estudiosa do tema, resume o cenário atual: o número de escolas que oferecem vagas diminui com a justificativa de que a procura pela unidade é baixa. Com menos opções, o acesso fica mais difícil e menos pessoas buscam atendimento.

Da mesma forma, mais de 30 pessoas são matriculadas por sala para que haja razoável número de alunos por professor após uma esperada evasão e, com a sala cheia, mais pessoas não conseguem acompanhar e, de fato, se evadem. “Chamo de estratégia do abandono. É uma população que ainda não tem conhecimento dos seus direitos e já teve experiências ruins com a escola no passado. Sem se sentir convidada e acolhida, a maioria faz o que se espera dela: desiste de estudar”, afirma.

A modalidade também é a que recebe menor investimento por aluno pela tabela do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Enquanto os estados mais pobres recebem por ano 2.285 reais por aluno do Ensino Fundamental regular, por adulto, apenas 1.828 reais. Autor de estudos sobre o tema e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leôncio Soares afirma que a EJA é como um “ônibus que sai superlotado e de portas abertas, porque sabe-se que as pessoas cairão pelo caminho”.

Modalidade é a que mais enfrenta salas superlotadas Modalidade é a que mais enfrenta salas superlotadas

Ele aponta que, para frear o ciclo vicioso, seria necessário fazer investimentos específicos na área. “Os professores precisariam ter mais formação voltada para atender os adultos, o material didático deveria ser diferente, o regime de estudos, enfim, quase tudo precisaria ser reavaliado se a prioridade fosse levar essas pessoas às escolas”, afirma.

Sem assento preferencial

Soares explica, no entanto, que esta é uma área em que a preferência não é dos mais velhos. Apesar de lembrar do direito constitucional reforçado pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996, ele destaca duas políticas públicas recentes que reforçaram o estigma de secundária da modalidade. A primeira foi o lançamento do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), em 2008, que passou a dar bolsas mensais a estudantes adultos que cursem o Ensino Fundamental, mas limitou a idade dos beneficiários entre 18 e 29 anos. Outra foi a ampliação da obrigatoriedade do Estado de oferecer vagas em instituições públicas, que era de 7 a 14 anos e passou para 4 a 17 anos até 2016. “São avanços para essas populações, mas, quando você faz um projeto moderno que foca somente em uma parcela, segrega os demais.”

A fala de Miguel Alves da Silva, estudante da segunda etapa (equivalente aos 4º e 5º anos do Ensino Fundamental) no CEU Parelheiros, em São Paulo, mostra os fatos do ponto de vista de quem já tem idade para cabelos brancos, a começar por qual seria essa idade: “No documento 63 anos, mas na verdade eu tenho 73. É porque onde eu nasci, em Cana Brava (distrito de São Sebastião, interior de Alagoas), não tinha como registrar e aí ficou errado”.

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Silva conta que a infância foi de trabalho na roça e quando conheceu uma escola até chorou de vontade de estudar. “Eu sempre quis muito, mas não deu”, diz. Aos 12 anos mudou-se para o Paraná e trabalhou com construção civil, mas meses depois os pais voltaram para o Nordeste. “Fiquei por conta e tive de correr atrás do pão pela vida toda. Só de uns anos para cá, comentando sobre a oportunidade que as crianças de hoje têm, fui saber que eu também podia”, conta. Apesar do empenho, as dificuldades persistem: “A saúde não ajuda, então é difícil enxergar. A memória não é a mesma dos jovens e, vez ou outra, tem um problema mais grave, mas o próprio médico diz que nada me faz melhor do que estudar”.

Silva é um dos 33 alunos da turma de Robson Martins de Oliveira, um dos mais dedicados, segundo o educador. Na mesma sala, o mais novo tem 24 anos. Para Oliveira, a diversidade de conhecimentos, experiências e histórico escolar na EJA são ao mesmo tempo o que a torna mais rica e mais difícil que as classes regulares. “Existe uma disparidade muito grande em relação às competências dos educandos. Cada um estudou em uma época, um estado e uma fase da vida diferente”, diz.

Em sua opinião, os estudantes precisam de atendimento individualizado e turmas grandes atrapalham. “Uns precisam de alguém que sente do lado e ajude, outros de material para refletir”, diz. Embora o ano letivo comece com 30 matriculados, a cada um que deixa de frequentar as aulas por determinado período, outros são incluídos. Em 2010, sua lista de chamada no fim do ano tinha 54 nomes. “Se houvesse mais turmas, poderíamos também reclassificar os alunos com níveis próximos de aprendizagem, tornando o trabalho mais adequado para todos.”

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Soares, da UFMG, afirma que a análise das experiências de sucesso mostra que turmas com no máximo 20 estudantes nas etapas equivalentes ao Fundamental e 25 nas de Ensino Médio são ideais. Também faz diferença haver um professor auxiliar para dar atenção redobrada aos que estiverem perto de desistir ou com necessidades específicas. “O adulto ainda é um desconhecido para a Educação. Raramente tem alguém que estuda a psicologia do adulto, um trabalho de filosofia da educação que foque nesse público e esse desconhecimento se repete em todas as áreas relacionadas”, explica.

A professora Clarice Wilken de Pinho, de Belo Horizonte, é uma exceção. Durante a faculdade ela se interessou pelo tema, fez parte do estágio obrigatório em EJA e passou a participar de seminários. Hoje tem duas turmas no Colégio Imaculada Conceição e conta que os desafios são maiores, mas a vontade de aprender dos alunos também fica mais evidente. “Ouvi-los incentiva muito. O discurso é de realização de um sonho. Muitos começam a fazer planos a cada passo que dão e você acompanha a olhos vistos o processo emancipatório”, afirma.

Os obstáculos que enfrenta são os mesmos de evasão, turmas grandes e heterogeneidade. Nas turmas de alfabetização, os mais novos costumam ter 40 anos e dois ou três mais de 80 anos. Nas etapas seguintes, a idade média cai até chegar no equivalente ao Ensino Médio com a maioria da turma entre 20 e 30 anos. “Tenho certeza de que, se mais opções fossem oferecidas, mais pessoas conseguiriam acompanhar. Precisa ter flexibilização de horários, possibilidade de ausência temporária e a atenção para os problemas pessoais, que muitas vezes não podem ser contornados”, diz.

Clarice cita como exemplo os dois casos concretos de evasão que teve este ano: uma aluna idosa foi submetida a uma cirurgia no coração e terá de ficar de repouso por três meses e outro foi informado pela empresa que cobriria dois meses no período noturno por causa de férias dos colegas. “São situações em que não é possível exigir deles prioridade aos estudos, mas apenas deixar a porta aberta e aguardar que voltem.”

No Colégio Santa Cruz, em São Paulo, que mantém há 40 anos um projeto de Educação de Jovens e Adultos considerado modelo, a evasão também preocupa os coordenadores. Por semestre entre 10% e 25% deixam as salas, embora as 500 vagas sejam disputadas por moradores da cidade toda. Alguns alunos vivem em bairros a mais de duas horas de distância da escola no Alto de Pinheiros e as salas têm até 40 alunos. “A distância e as turmas grandes atrapalham, mas eles fazem sacrifícios homéricos. Eles valorizam a qualidade, os professores que não faltam e a biblioteca equipada. Sentem muito a diferença quando vêm da escola pública”, afirma o coordenador do Ensino Médio, Claudio Bazzoni.

Segundo Bazzoni, a maioria começa cada etapa apenas com o objetivo de concluí-la, mas acaba visualizando a oportunidade de aprender mais. “Quando chegam no último semestre, eles começam a falar no vestibular, em profissões que pretendem seguir, são transformações reais que acompanhamos todos os anos”, comenta.

Apenas o diploma não é incentivo para que adultos em condições socioeconômicas desfavoráveis percam o pouco tempo de descanso que têm na escola. “Ele prefere ficar em casa a estar na sala de aula sem aprender. Os cursos estão acabando, mas existe demanda de alunos, estamos em um ciclo todo vicioso. Existem poucas opções, nelas número grande de alunos e acabamos afastando cada vez mais a pessoa do seu direito”, diz.

Da extrema zona sul de São Paulo, onde os índices de pessoas sem Ensino Fundamental e Médio são ainda maiores, o professor Robson conclui que o problema central está no investimento que a modalidade demandaria se fosse acolhedora e eficiente. Caso as matrículas começassem a aparecer seriam necessárias mais escolas, contratação de professores e infraestrutura. “Além disso, já pensou todo esse povo com educação de qualidade? Não haveria espaço para tanta desigualdade, más condições de trabalho, transporte pior ainda. O Estado não investe de propósito”, dispara.

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