Educação

A política de segurança pública nas escolas é precária

Idealmente um lugar de trabalho e ensino, a escola também pode ser o lugar de ‘acerto de contas’

Escola Aquarela em Saudades/SC após ataque. Créditos: Foto: Simone Fernandes/Arquivo Pessoal Créditos: Foto: Simone Fernandes/Arquivo Pessoal
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Escolas são lugares que todos são obrigados a frequentar. As famílias, por sua vez, têm o dever de matricular crianças e se responsabilizarem pela frequência. Ou seja, ninguém pode deixar de ir escola. É direito subjetivo e o Estado têm o dever de garantir o acesso e permanência. Uma instituição em que todas as crianças e jovens, obrigatoriamente frequentam, deveriam ter suas vidas em segurança dentro e fora delas, contudo não é o que ocorre.

O ataque ocorrido em Santa Catarina, no dia 4 de maio que ceifou a vida de 4 crianças e 2 funcionárias, me trouxe lembranças, pois não é a primeira vez que famílias se despedem de crianças na entrada da escola e no mesmo dia são chamadas para retirem seus corpos mortos pelo mesmo portão por onde adentraram. Se mudanças não ocorrerem, outras mortes irão acontecer, pois a política de segurança pública nas escolas é precária.

Escolas são importantes, principalmente as públicas localizadas nas regiões de maior vulnerabilidade. É lá que muitos estudantes recebem a única refeição do dia, material escolar, formação e uma experiência de grande riqueza: a convivência com a pluralidade, contudo a insegurança também está sempre presente. As que estão em regiões marcadas pela vulnerabilidade social são as mais suscetíveis a ataques violentos.

Durante anos presenciei estudantes e profissionais serem agredidos por pessoas que nelas adentraram. Compartilho neste artigo uma situação que ocorreu em 1993. Eu era professora de Educação Física em uma escola localizada numa região periférica da cidade de São Paulo. No primeiro dia de trabalho, logo no portão de entrada havia o desenho de um corpo, feito com giz branco pela perícia, evidenciando que alguém que fora assassinato. Ao redor haviam manchas de sangue.

As pessoas precisavam caminhar sobre o desenho para entrar. A quadra de esportes ficava fora do prédio e no bairro não existiam equipamentos de cultura, esporte ou lazer. Diariamente convivia com uma situação complexa, pois dezenas de jovens que moravam nos arredores, chegavam em grupo e ocupavam a quadra enquanto eu trabalhava. Eles queriam jogar também, mas não estavam matriculados.

Quando levei a situação ao diretor, ele afirmando que os jovens em sua opinião eram perigosos, determinou que funcionários trancassem a porta de entrada depois que eu saísse com as turmas e só abrissem quando eu terminasse a aula, justificando que dentro do prédio estava a maioria e os que tinham aulas comigo, deveriam ser protegidos por mim.

Não havia outra proposta por parte da supervisão escolar, que usou como argumento o índice de roubos e furtos na região e a importância de preservação dos bens materiais. Então tomei a iniciativa de conversar com os jovens e negociamos a divisão da quadra. Eu trabalhava em uma metade e eles utilizavam a outra. Foi o caminho que encontrei.

Com a coexistência, ouvi dos jovens histórias de encarceramento de seus familiares, abandono, violência policial, desemprego e outras situações que me fizeram conhecer a realidade em que estavam inseridos e a falta de oportunidades. Carregavam históricos de reprovação escolar continua que culminavam em evasão.

Eles, quando me viam no ponto de ônibus esperando, me faziam companhia até que eu embarcasse. Éramos todos violentados por aquela estrutura. Eu, os estudantes na quadra, os profissionais e estudantes trancados dentro da escola e os jovens evadidos. Seguimos assim, coexistindo inseguros dentro da escola e fora dela.

 

Até que em uma tarde, houve um confronto armado na rua envolvendo a polícia. Eu busquei reunir os estudantes para entrarmos rapidamente e nos protegermos, mas os jovens não matriculados, também queriam se proteger no interior do prédio. Tocamos incessantemente a campainha, mas a porta só foi aberta quando o confronto cessou e todos foram abordados pela polícia com aquele procedimento conhecido: Rosto no muro, mãos na cabeça e pernas abertas, inclusive eu que também era jovem e negra.

Lembro do medo que senti e após me identificar um policial me disse: Professora, aponte quem são os seus alunos. Só quem estuda vai entrar. Eu me recusei a colocar o dedo na direção dos rapazes e abalada entrei.

Vi durante anos estudantes serem procurados por pessoas que entravam nas escolas para ajustes de contas, responsáveis por crianças entrando e ameaçando profissionais, incontáveis cenas de violência na saída e até mesmo professores com medo de trabalhar, pois estavam sob algum tipo de ameaça, dentre outras situações que nem sempre a gente não vê nos jornais.

Este relato não é apenas sobre mim. Muitos professores, se ouvidos, trarão vivencias semelhantes, pois se trata de uma violência estrutural e sistêmica gerada em conjunto com uma política precária de segurança pública que prioriza a proteção de patrimônios e bens materiais.

Precisamos de ações mais efetivas de proteção as crianças e jovens, pois suas vidas não estão seguras em um dos lugares mais importantes por onde seus pés certamente passarão: A Escola, que pensando nas contribuições de Focault, ainda são espaços atravessados por estruturas de poder, que a exemplo de outras instituições, sequestra corpos e não consegue caminhar sem o “fim das grades, fim das correntes, fim das fechaduras pesadas” (Foucault, Vigiar e Punir).

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