Educação

Presidente da UNE: “Nova geração está em disputa”

Carina Vitral fala sobre os desafios diante da nova realidade do Ensino Superior e do crescimento do pensamento conservador

Carina Vitral|Carina Vitral
Carina Vitral Carina Vitral
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A nova presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) Carina Vitral, tem um aperto de mão firme. Firmes também são as convicções da santista de 26 anos, declaradamente feminista e socialista. À frente da maior entidade representativa dos estudantes no Brasil, Carina rebate, por exemplo, a afirmação de que estamos vivendo uma onda conservadora entre os jovens. E critica: “Acho que o governo fez pouco debate e disputa de ideias. Isso torna a nossa geração muito contraditória, mas não necessariamente de direita”, afirma.

Sobre as jornadas de junho, das quais participou, diz que o movimento estudantil colhe os frutos dessa geração. “Hoje você chega na escola e 100% dos alunos já participaram de passeatas. Antes, precisávamos explicar o que era uma manifestação. É uma geração mais mobilizada e aberta a manifestações, uma geração em disputa, mas que despertou para a política.”

Estudante de Economia da PUC-SP, a presidente da UNE espelha a nova realidade do Ensino Superior brasileiro, responsável por concentrar 74% de suas matrículas no Ensino Superior privado. “A mudança de perfil é muito significativa e pode ter um potencial revolucionário na universidade”, analisa. Carina recebeu a reportagem de Carta Educação na sede da UNE, em São Paulo, onde discutiu os reflexos das jornadas de junho, as barreiras enfrentadas pelas mulheres na política e os desafios do movimento estudantil.

Carta Educação: Você começou a sua história política na escola. Como foi isso?

Carina Vitral: Comecei de forma pouco tradicional, no movimento estudantil. Não no grêmio da escola, mas em uma mini-ONG que passou a existir na minha escola depois da Gincana da Cidadania, ação feita em várias escolas de Santos, de onde eu sou. Nessa época, criamos um grupo chamado Reticências, sobre protagonismo juvenil. Eu tinha 15 anos. Depois fui da Comissão de Juventude Municipal de Santos. Foi assim que comecei na militância.

CE: De que maneira a política era tratada na sua escola?

CV: Era uma escola particular e dei sorte de ter uma liberdade grande. Logo depois, mudei de escola e o diretor pediu para que eu montasse um grêmio. Os donos da escola eram de esquerda e sempre quiseram que existisse um grêmio. Acho que eu me beneficiei de um ambiente mais democrático, porque já é tão difícil começar a militar e encontrar barreiras na escola. Isso é desanimador. Mas encontrei pessoas bastante democráticas.

CE: Pela primeira vez, uma mulher está sucedendo a outra na presidência da UNE. Apesar dos avanços, a participação da mulher na política institucional ainda enfrenta barreiras. Que desafios você enfrentou durante a sua militância?
 
CV: Sobre as dificuldades, com certeza, foram inúmeras e cotidianas. O desafio da mulher na política é superar barreiras cotidianas, sem exageros. Desde quando você vai conversar com um deputado e é destratada até você entrar numa sala de aula e ouvir um fiu-fiu, ou ter sua condição de liderança diminuída por ser mulher.

CE: Como incentivar a maior participação das mulheres no jogo político?

CV: Nós precisamos criar espaços de incentivo nas organizações para que a mulher possa não só se aproximar de um espaço do movimento, mas também ascender como liderança. Na UNE, tivemos uma decisão muito forte de empoderar mulheres. Então não adianta só ter mecanismos, a questão da representatividade é muito importante. Na medida em que você tem uma mulher na presidência, outras também vão começar a sonhar e a se espelhar nessa liderança. Cria um círculo virtuoso muito forte.

CE: Qual é o papel da UNE diante de um cenário político polarizado e da ascensão do pensamento conservador, inclusive entre os jovens?

CV: Acho que o papel da UNE é ainda mais importante como instrumento de disputa de ideias na sociedade. Agora, tenho uma convicção de que existe uma ascensão de um pensamento e uma correlação de forças que pende à direita, mas não acho que essas ideias são predominantes na juventude. Tenho dito isso porque é importante ser justo com os fatos. As manifestações de junho de 2013 eram essencialmente jovens, já as passeatas de 15 de março deste ano, não. Por que os jovens não foram para essa manifestação? Porque eles ainda não se identificam com essas ideias mais conservadoras. Ah, mas os jovens são a favor da redução da maioridade penal. Sim, esse é um exemplo que atribuo ao pouco debate que fizemos nos últimos anos. Tivemos muitas vitórias significativas, especialmente para os jovens, nós mudamos a vida de muitos deles, fruto da luta e também das conquistas sociais por meio do governo. Mas foi pouco falado que essas conquistas foram coletivas. Para uma juventude que nasceu em uma nova realidade, em que o ProUni, por exemplo, já é uma conquista naturalizada. O jovem não vê como fruto de uma vitória coletiva e de uma geração inteira de jovens lutando pela democratização da universidade. Parece que foi uma ascensão social de cunho individual, o que não deixa de ser, mas, de fato, existiu uma luta coletiva. Acho que o governo fez pouco debate e pouca disputa de ideias. Isso torna a nossa geração muito contraditória, mas não de direita. Contraditória, porque o jovem não é contra o casamento gay ou os direitos civis, ou seja, isso não é ser conservador. Isso é ser contraditório.

CE: Diante desse cenário, que ações a UNE pretende tomar para colaborar com esse debate?

CV: A primeira delas é encarar a polarização da sociedade e comprar um debate público com o conservadorismo. Foi muito simbólica nossa batalha no Congresso contra a redução. É não ter tolerância com os conservadores, com deputados que vão fardados para o Congresso, com os que são de fato reacionários. Reacionários, porque reagem a uma mudança significativa que ocorreu no Brasil. A outra é que estamos lançando um aplicativo para dialogar melhor com as redes sociais e vamos reformular nossa comunicação, para que ela seja um instrumento de debate e não só uma comunicação institucional.

CE: O Censo do Ensino Superior 2013 revela que 73,5% dos estudantes de graduação estão em instituições particulares, o que corresponde a 5,3 milhões de alunos, ante 26,5% de matrículas em instituições públicas. Como você analisa as mudanças no perfil do aluno do Ensino Superior e que desafios tais mudanças trazem para a UNE? 

CV: A mudança de perfil é muito significativa e pode ter potencial revolucionário na universidade, porque a sua composição social também determina o conteúdo do que se ensina e do que se aprende. O desafio é adaptar a universidade ao novo perfil social, porque a estrutura universitária ainda é muito elitizada. Coisas como a assistência estudantil, antes só mais um serviço dentro da universidade, hoje é vital para que continuemos na universidade. Essa é a luta: conseguir nos adaptar à nova realidade. Na universidade privada, apesar da bolsa ou do financiamento, o lanche, o bandejão é a barraquinha da frente, cara e de má qualidade. Nosso deslocamento intercampi é dentro da cidade de transporte público. A mudança de perfil significa que 90% dos estudantes trabalham na universidade privada, e não é um estágio de são horas, são trabalhadores e estudantes.

CE: Do ponto de vista da mobilização política, como é o aluno da universidade privada? O que muda e que desafio traz esse novo perfil?

CV: Essa mudança da composição da universidade tem transformado muito o movimento estudantil. É natural que a UNE também mude nesse sentido. Ainda temos o preconceito de que o estudante privado não se mobiliza. O movimento estudantil era forte na universidade pública, mas isso não é mais a realidade. Quase 70% do último Congresso da UNE foi formado por delegados de universidades privadas. O estudante de universidade privada é muito mais carente da organização estudantil, porque na universidade dele é proibido se organizar ou tem uma catraca que impede que a UNE entre nas salas para conversar, ou não há disponibilização de espaço para um centro acadêmico. Mas o estudante resiste contra essas barreiras. E, quando passamos nas salas, ouvimos um encantamento muito grande. Apesar de toda a democratização do acesso ao ensino, a universidade privada ainda é precária, com exceção de algumas mais tradicionais. Essas mais mercantilizadas, gigantes, são muito precárias, quase não há pesquisa e extensão. Algo que tem revoltado os estudantes e que foi o principal tema que a base trouxe para a UNE foi a luta contra as disciplinas online nos cursos presenciais.

CE: Como assim? Explique.

CV: Existe uma portaria do MEC que diz que até 20% das disciplinas do curso podem ser oferecidas a distância. Só que as universidades vêm usando esse dispositivo como regra. Então, todo semestre 20% das disciplinas são a distância. Isso cria aberrações, como um curso de enfermagem que tem a disciplina de farmacologia a distância. Isso tem revoltado muito os estudantes, principalmente porque a universidade propagandeia um curso presencial. Na UNE, achamos que a educação a distância é um dispositivo importante para reduzir as barreiras geográficas, mas para uma educação a distância de qualidade precisamos de muito investimento. Só que as universidades utilizam o dispositivo do EAD para cortar custos, o que significa a precarização.

CE: Como você vê a expansão de vagas no Ensino Superior via iniciativa privada?

CV: O primeiro desafio, que foi escancarar as portas da universidade e dar oportunidade para que negros e oriundos de escolas públicas pudessem entrar, conseguimos enfrentar. A UNE foi ativa na formulação do ProUni e da nova formulação do Fies. Após dez anos, precisamos analisar qual é o resultado disso. O resultado significa, sim, uma popularização da universidade, mas também precisamos ver que o ProUni deu uma saúde financeira para as empresas do setor e o Fies diminuiu a quase zero a inadimplência. Virou um negócio de risco zero. O que criticamos é que essa estabilidade não gerou o fortalecimento dessas instituições, mas sim fusões com capital estrangeiro, que compraram as universidades. Em vez de a estabilidade servir para melhorar a qualidade, o que aconteceu foi a precarização. Hoje, o que a UNE discute é que precisamos ter controle social sobre isso. Veja, 69% dos estudantes no Brasil são de instituições federais, do ProUni ou do Fies. Já que na lógica vigente quem paga a banda escolhe a música, se o governo está pagando a banda, precisa ter regras claras para a música, ou seja, para o ensino da universidade. O mínimo da qualidade, exigência de pesquisa, extensão, uma série de regulamentações. Por isso achamos importante a regulação do ensino privado. O Insaes está tramitando no Congresso e é um mecanismo no qual temos bastante esperança de que possa servir para facilitar a fiscalização do MEC na ponta. Agora, achamos que isso precisa ser bastante acelerado. O mercado é bastante agressivo com as fusões e compras. Dessa forma, para garantir a qualidade da educação, precisamos de uma política agressiva de regulação.

CE: Em junho de 2013, vimos manifestações de massa, congregadas sobretudo por jovens, sacudirem o cenário político brasileiro. Na sua visão, a UNE perdeu espaço de liderança nos movimentos de jovens?

CV: Acho que não. A UNE participou das manifestações desde as primeiras convocações contra o aumento da tarifa em 2013 e participamos de todas as anteriores. Em junho, não teve ninguém que fosse capaz de dirigir aquele movimento. A UNE participou como milhares de outros jovens participaram. Tivemos um papel ativo, inclusive nos reivindicamos como parte disso, porque eram pautas históricas da UNE. Achamos que é positivo que as lutas da juventude tenham transbordado em relação às instituições. Elas não superaram as instituições, mas transbordaram aquele rol dos que tradicionalmente participavam.

CE: Que impacto os movimentos de junho trouxeram para você como militante?

CV: Foi muito significativo. Qualquer pessoa que sonha com uma cidade diferente tem noção de que a mobilização social é essencial para essa transformação da sociedade. O movimento estudantil em geral colheu os frutos da nossa geração de jovens. Hoje você chega na escola e 100% dos alunos já participaram de passeatas. Antes, a gente tinha de chegar na sala de aula e explicar o que era uma manifestação. É uma geração mais mobilizada, aberta à manifestação, uma geração em disputa, mas que despertou para a política. A geração dos anos 90 e 2000 falava que não gostava de política. Hoje você não vê mais o jovem falando isso: ele passa o dia inteiro dando opiniões políticas. Podem não ser opiniões refinadas como um cientista político, mas são opiniões sobre política.

CE: A ascensão de novas formas de organização da juventude, como os movimentos mais horizontais, trouxe alguma transformação para a UNE?
 
CV: Sim, a UNE só se mantém como uma liderança significativa na sociedade porque sabe se adaptar aos momentos políticos. A UNE vai completar 80 anos, se ela se organizasse da mesma forma ao longo de todos esses anos, teria sido superada, mas não foi, porque soube se reinventar. Essa nova conjuntura, não acho que seja um movimento específico que seja novo nesse sentido, faz com que as organizações mudem. Quem não mudar vai ficar para trás. Isso faz a gente repensar, mas não é uma coisa nova, é algo que fazemos permanentemente.

CE: Sendo a representante e porta-voz dos estudantes, o que você gostaria de dizer para os professores?

CV: Acho que precisamos de um pacto pela escola pública. Os estudantes e professores precisam se unir em torno da defesa da escola pública. Como a vida na escola é complexa, muitas vezes uma relação de precarização do trabalho do professor e de sua desvalorização do ambiente escolar, acaba que isso se traduz numa convivência muito conflituosa entre professor e aluno. Mas esses dois atores são essenciais para a mudança da escola.

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