Educação

“A faculdade não está pronta para lidar com a permanência dos alunos cotistas”

A estrutura que os estudantes necessitam é muito mais que material: o aluno negro precisa de suporte para superar o isolamento e o racismo

Jovem com cartaz pedindo cotas na Universidade de São Paulo, em 2019
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Ao andar pelos corredores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a estudante Larissa Alexandre relata um incômodo. “As pessoas brancas vivem o ambiente acadêmico porque ele foi estruturado para elas. Os pretos precisam viver a universidade para se politizar e se preocupar com essas questões.”

Fosse pelos números, o cenário deveria ser diferente, mais inclusivo – mas ainda não é. Na última quarta-feira 13, o IBGE divulgou que as universidades públicas tinham 50,3% de estudantes negros em comparação aos brancos, cenário inédito em instituições historicamente elitizadas. 

No entanto, há quem questione até que ponto os dados apresentados pelo IBGE representam a realidade. Fatores como instabilidade socioeconômica e sensação de despertencimento dificultam que os alunos cheguem ao final da graduação, além de interferir na vivência universitária desses estudantes. 

Os números são resultados da Lei de Cotas, sancionada em 2012 pelo governo federal, e que reservou 50% das vagas de universidades e institutos federais para estudantes oriundos de escolas públicas, com baixa renda ou autodeclarados pretos, pardos e indígenas. De lá pra cá, o número de estudantes com esse perfil vem aumentando a cada ano: já em 2014, depois da efetivação da lei, cerca de 46,3% dos estudantes federais eram pretos e pardos. 

Larissa acredita que, mesmo com as cotas, o sistema ainda não consegue atender as demandas de alunos cotistas: “A faculdade não está pronta para lidar com a questão de permanência dos alunos, e permanência não é somente dar auxílios. É saúde mental e várias outras questões”.

Para ela, até andar pelos corredores da medicina a faz sentir-se mal: desde os quadros de antigos professores até os alunos, todos ali retratados são brancos. “Isso me entristece muito, parece que esse ambiente não é meu.”

No caso de Alexandre Rodrigues dos Santos, recém-formado em Odontologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), as dificuldades chegaram principalmente no início da graduação.

 “Apesar de gratuito, o curso não é barato. Na minha época, não havia instrumental a ser cedido para os alunos, então a cada semestre eu tinha que desembolsar três mil reais para isso, sendo que a minha mãe, na época, não recebia nem um salário mínimo completo”, diz. 

Alexandre durante sua colação de grau em janeiro de 2019 (Foto: Arquivo Pessoal)

Entre 2014 e 2015, o Inep apurou as taxas de desistências nas instituições públicas. Em geral, 43% dos estudantes desistiram dos cursos antes do fim da graduação e somente 22% matricularam-se e conseguiram terminar dentro do chamado período ideal. Para alunos cotistas, o cenário tende a ser pior. 

O diretor de Ações Afirmativas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG), Julvan Moreira de Oliveira, explica que a maioria dos alunos cotistas vem de famílias de baixa renda, e que falta um preparo prévio para que possam dedicar-se exclusivamente aos anos de graduação.

Esse esforço maior realizado pelo cotista ao ingressar na universidade pode gerar problemas de saúde mental e dificuldades no relacionamento com os novos colegas. Não é raro que estudantes negros fiquem isolados e não participem das discussões em salas de aula, como os demais estudantes”, explica.

Estudo x trabalho

As dificuldades financeiras são apenas o início de algo muito maior. Virgílio Fernandes, que se formou em Sistemas da Informação pela USP, conta que ingressou na universidade aos 23 anos, mais velho que a maioria de seus colegas de classe, e levou seis anos para concluir o curso. Ele diz que, em certo momento, teve de optar entre permanecer estudando ou trabalhando, já que não conseguia mais conciliar as duas coisas. 

“Por sorte, e considerando um privilégio, eu tinha uma família que me apoiava. Por mais que não tivéssemos uma renda muito grande, pude ficar alguns anos sem trabalhar, vivendo de ajuda da família e de bolsas da faculdade. Se não tivesse sido por essa via, posso dizer com bastante convicção que não teria conseguido me formar, teria sido mais uma estatística negativa” relata.

Virgílio e família no dia de sua colação de grau. (Foto: Arquivo Pessoal)

Para Matheus Magalhães, estudante de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o desconforto dentro do ambiente acadêmico vai além das dificuldades financeiras. “Sinto o tempo todo que não me encaixo nesse ambiente. Hoje luto todo dia por isso, mas já fui barrado na portaria, fui acusado de roubo sem prova nenhuma, fui humilhado em sala de aula. E em todos esses casos, o que me fazia diferente dos outros era a questão racial”, conta.

Para ele, como nem os próprios professores estavam preparados para receber alunos que fogem do estereótipo esperado, é no mínimo equivocado dizer que as cotas trouxeram equilíbrio racial para o ambiente acadêmico.

“Campanhas de valorização da diversidade, da valorização das diferenças, são projetos que as universidades podem desenvolver”, destaca o professor Julvan. “Pensar espaços em que esses estudantes negros possam se encontrar e conversar sobre suas vidas na universidade, reduzindo aquela sensação de que a universidade não é o seu espaço quando se está isolado em seus respectivos cursos, podendo trocar experiências com outros estudantes”, diz.

Embora tenham vivenciado diversas experiências ruins, os estudantes destacam que aprenderam a buscar por identificação, de maneira que a universidade os auxiliou a reconhecer a própria negritude. Alexandre afirma: “O engraçado é que a minoria tende a se unir nesses ambientes. Quando você recebe informações novas e vê culturas novas, sua interpretação das coisas muda. Quanto mais eu via negros cheios de vida, com vários penteados, diferentes grupos de amigos, gírias e tudo mais, mais eu aprendia”.

Já Matheus credita seu desenvolvimento pessoal ao movimento negro da universidade, do qual faz parte. “A gente tem uma relação de afeto, o que nos ajuda a permanecer no espaço.” 

Larissa completa: “Estar na faculdade fortaleceu minha negritude porque era um assunto que não tinha prioridade na minha vida. Agora vejo, não só para mim como para todo o coletivo de pessoas pretas e não só dentro da faculdade, que a negritude é algo coletivo.”

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