Educação

A comunidade contada por seus jovens

Trabalho instituído nos anos finais do Ensino Fundamental transforma adolescentes em protagonistas do aprendizado

Ciclo autoral|Trabalhos incentivam a autoria
|O projeto motivou o aluno Gilvan Rodrigues a fotografar sua comunidade ciclo autoral jovens|palmares comunidade bairro projeto ciclo autoral são paulo coletividade autoria
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A proposta era um trabalho interdisciplinar sobre biografias a partir dos nomes de ruas do bairro dos Palmares, onde fica a Escola Municipal Marili Dias, na zona norte de São Paulo. Bastou passar pelo portão da escola, porém, para o foco mudar. Enquanto a professora de História tentava despertar o interesse por Carlos Lamarca, Noel Rosa e Vinicius de Moraes, os alunos só comentavam o mato alto, a falta de calçadas e o abandono.

“Deixa a biografia para lá. Eles acabaram de achar o tema do Trabalho Colaborativo Autoral (TCA)”, comentou com os colegas a docente de Língua Portuguesa Sandra Santella. Foi assim que nasceu o Palmares Vive, um dos mais bem-sucedidos projetos entre os mais de 800 trabalhos de protagonismo estudantil e intervenção social realizados por estudantes dos últimos anos de Ensino Fundamental das 547 escolas da rede municipal de São Paulo em 2014.

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“Escutar a criança é fundamental”

Quando o termo e a proposta surgiram, no fim de 2013, muitos educadores duvidaram da aplicabilidade. Será que os jovens, quase todos entre 12 e 14 anos, saberiam encontrar sozinhos temas para desenvolver trabalhos que os envolvessem por um ano todo e gerasse apresentações finais para toda a escola? Bastou dar a liberdade. “Eles tiveram tantas ideias que mesmo depois de formados continuam vindo à escola para dar continuidade”, comenta Sandra.

Os temas mais comuns foram a falta d’água, dilemas da adolescência – incluindo orientação sexual, drogas, bullying e relações familiares – e demandas sociais do bairro. Os resultados vistos na maioria das unidades são exposições fotográficas, vídeos, músicas e fóruns de debate, mas também é visível a melhora da autoestima dos alunos, da relação entre eles e os professores e do diálogo da escola com a comunidade.

“As palavras-chave do Trabalho Colaborativo são autoria, coletividade e território. Queremos que os alunos saiam do Fundamental com uma experiência de protagonismo que vá além da sala de aula”, comenta Débora Baroudi, uma das responsáveis pelo projeto no Centro de Educação Unificado Aricanduva, na zona leste da capital. No fim do ano passado, tornou-se assistente da Secretaria Municipal de Educação para trabalhar com foco no TCA.

Ela conta que a unidade em que dava aulas trabalhava com um currículo tradicional e a proposta funcionou como um provocador. “Todos nós tivemos de ouvir mais os alunos para ajudá-los a encontrar formas de participar”, comenta. Em muitos casos, o trabalho transformou-se em uma plataforma para sistematizar as demandas locais e iniciar um trabalho de reivindicação junto à própria prefeitura.

Na Marili Dias, por exemplo, a indignação com as condições das ruas em torno da escola levou inicialmente a uma investigação mais apurada. Outro professor de Língua Portuguesa, Plínio Pereira de Souza, deu aulas de fotografia e vídeo e trouxe um fotógrafo profissional para uma oficina. “Quem disse que só dá para falar com palavras?”, questiona o docente, diante das imagens feitas pelos alunos que mostram visões gerais do bairro e detalhes sutis do cotidiano.

A professora Sandra conta que foram selecionadas 50 imagens, das 500 fotos produzidas pelos alunos. Uma surpresa: a maioria dos cliques selecionados para a exposição é obra de Gilvan Rodrigues, de 15 anos, estudante que até então evitava falar com professores e colegas. Ele também não quis conversar com a reportagem, exceto quando a pergunta referia-se a alguma de suas fotos. São dele as imagens do Palmares que ilustram estas páginas.

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Na exposição, que também teve apresentações de rap e vídeo, os alunos decidiram iniciar uma enquete com os moradores sobre a principal carência do bairro. Ampliaram a pesquisa com os vizinhos e conseguiram mil respostas. O resultado surpreendeu e deu novo rumo ao Trabalho Colaborativo Autoral. “A gente apostava que ia dar segurança ou saúde, mas foi lazer”, lembra Diego Artur Santos Freire, de 14 anos.

Eles passaram a levantar possibilidades de equipamentos e pontos para praças. Quando já acumulava um “dossiê” de carências e sugestões, a direção entrou em contato com a subprefeitura para tentar agendar uma visita ao gabinete e fazer com que os alunos entregassem pessoalmente o documento. “Para a nossa surpresa, o subprefeito (Carlos Roberto Massi) disse que viria aqui conhecer a escola”, lembra a professora Sandra.

Para a visita, o grupo organizou o Primeiro Fórum dos Palmares, que mais uma vez abria as portas à comunidade. “Ele nos ouviu, deu razão e disse que ia atender”, conta Karina de Carvalho Pereira, 14 anos. No fim do ano, nada havia sido feito pelo subprefeito, o que acabou se tornando assunto do Segundo Fórum, quando mais uma vez o político apareceu. “Deu as desculpas dele e marcou outra data. Até agora nada, mas a gente não vai parar”, garante a aluna. Em março, já estava sendo planejado o Terceiro Fórum. Desta vez, a comunidade escolar aguarda a presença de secretários municipais. “A gente não quer se mudar para um lugar melhor. A gente quer fazer daqui um lugar melhor”, comenta Karina.

Na Escola Municipal Carlos Correa Mascaro, localizada na ponta leste da cidade, vídeos e fotos também foram as ferramentas mais usadas no Laboratório Mascaro, um dos produtos do Trabalho Coletivo Autoral. A unidade fica no Jardim da Conquista, bairro que tem esse nome por ter sido criado a partir do triunfo de uma ocupação.

A história de luta da comunidade é conhecida e motivo de orgulho para os alunos, muitos dos quais são filhos ou netos dos primeiros moradores. Por isso, a professora Gracinda Carvalho, responsável pelo laboratório de informática, propôs a exploração do restante da cidade para que encontrassem seus temas de TCA, no que ficou conhecido como Expedições Mascaro.

Os alunos pegaram ônibus até pontos turísticos de São Paulo como a Avenida Paulista e a região da Luz, onde fica a Pinacoteca. “No caminho, a professora e os alunos foram construindo a aula, ali mesmo deram início ao protagonismo. Cada coisa que eles viam era um tema para falar da desigualdade dentro da cidade”, conta o coordenador pedagógico Marcelo Alexandre Mercê. As diferenças iam da oferta cultural ao simples ponto de ônibus, que no Centro tinha banco e cobertura com desenho-padrão, enquanto no bairro era apenas um poste de demarcação. “Eles produziram tantos materiais, vídeos, músicas, ficamos todos envolvidos”, conta Mercê.

No fim do ano, as expedições foram no sentido inverso: professores de outras regiões e da Comissão Pedagógica Ibero-Americana foram conhecer a escola. “Surgiu tanta coisa, mas tanta, que os alunos se formaram, mas continuam vindo aqui para trabalhar nos projetos”, comenta o coordenador.

Segundo a técnica responsável da Secretaria Municipal de Educação, o sucesso do primeiro ano do projeto foi medido pelo envolvimento. “A avaliação é do processo formativo, do percurso percorrido pelos estudantes e não dos trabalhos finais. Nosso objetivo é que o trabalho colaborativo dê sentido à escola.”

Saiba mais

Ciclo Autoral – Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
Laboratório do Mascaro
Palmares Vive

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