Artes

A brincadeira continua

Conheça o Teatro de Bonecos Popular do Nordeste – Mamulengo, Babau, João Redondo, Cassimiro Coco, reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil

Mamulengo
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“…Miro teu olho de boneco
E cá dentro espio
Universo infindo
Bonecos surgindo
Riscando no ar
Feito flecha certeira
O Cassimiro Coco
De cada dia!”
(Trecho do poema Olho de Boneco, de Ângela Escudeiro)

O Teatro de Bonecos Popular do Nordeste – Mamulengo, Babau, João Redondo, Cassimiro Coco (TBPN) foi aprovado, com unanimidade, como Patrimônio Cultural do Brasil em março de 2015. Com isso, a expectativa é de que a prática, tipicamente nordestina, passe a ser mais valorizada, reconhecida e preservada. Presente em vários estados do Nordeste brasileiro, o teatro é chamado de Casimiro Coco no Maranhão e Cassimiro Coco no Ceará; João Redondo e Calunga no Rio Grande do Norte; Babau na Paraíba e Mamulengo em Pernambuco, entre outros.

Para poder justificar a presença do boneco em nossos dias, é importante falar da sua origem histórica – sobre o Mamulengo principalmente – como, onde e qual o papel que essa arte assume, situada dentro da cultura popular e erudita.

O teatro de bonecos no Brasil possui seus antecedentes. Toma-se como referência dados coletados por pesquisadores em manuscritos antigos ou em histórias contadas por velhos sábios do nosso povo. Informações concretas sobre sua origem e trajetória até os dias de hoje, porém, não foram encontradas, conforme nos diz Ana Maria Amaral. Certamente, porém, foi trazido para o Brasil pelos colonizadores europeus nos séculos XVI, XVII e XVIII, pois existem informações esparsas de seu uso pelo jesuíta José de Anchieta em sua catequese com os índios.

Sobre a origem dos fantoches, essa então perde-se na história dos nossos antepassados, como bem fala Hermilo Borba Filho: “(…) perde-se na noite dos tempos e a sombra das mãos é apenas uma suposição, mas Platão já dizia que a nossa visão do mundo é como sombras no fundo de uma caverna”. É possível que o passo seguinte tenha sido o recorte em pedra, em madeira, e, depois, em couro, de figuras de gente ou de bicho projetadas contra as paredes.

Para compreender o desenvolvimento dessa arte é preciso conhecer as condições em que ainda vivem os Mestres, o papel do Estado em relação a essa arte, as influências de alguns Mestres nativos que residem pelo interior e a vinda de outros para o nosso convívio.

Em minha vivência, enquanto atriz-bonequeira, tive a oportunidade de comprovar o uso pedagógico dos bonecos em várias áreas profissionais e de ter uma visão ampla de um instrumento criador que possui o potencial de comunicar ideias divertindo e, acima de tudo, educando.

Ao repensar o Mamulengo – em sua denominação universalizada – fiz uma reflexão sociológica, uma exposição histórica do que é o Mamulengo, uma busca etimológica da palavra, uma discussão sobre a tradução de sua linguagem e características remanescentes da Commedia dell’arte – forma de teatro popular, de origem italiana, improvisado, iniciado por volta do século XVI e que perdurou, de forma popular, no século XVIII.

O Mamulengo do Brasil, segundo pesquisas, é situado como resultado de vários fatores que contribuíram para a formação da cultura brasileira, tendo denominações diferentes em cada estado em que foi pesquisado e inserido na solicitação do Processo de Registro como Patrimônio Cultural do Brasil, reconhecido pelo Iphan.

O que é, afinal, o Mamulengo? Segundo o historiador e antropólogo potiguar Luís da Câmara Cascudo, o Mamulengo é uma “espécie de divertimento popular que consiste em representações dramáticas por meio de bonecos, em um pequeno palco ou alguma coisa elevada. Por detrás de uma empanada esconde-se uma ou duas pessoas adestradas, e fazem que os bonecos se exibam com movimento e fala. A esses dramas servem ao mesmo tempo de assunto cenas bíblicas e de atualidade. Tem lugar por ocasião das festividades da igreja, principalmente nos arrabaldes. O povo aplaude e se deleita com essa distração, recompensando seus autores com pequenas dádivas pecuniárias. Os nomes molengo, momolengo, mamolengo, Mamulengo vêm de ‘mão mole’, ‘molenga’, típico do Nordeste brasileiro. É o ‘boneco brasileiro’ surgido em Pernambuco com características bem regionais. De acordo com Martim Gonçalves, ‘a etmologia do termo mamolengo ainda não foi definitivamente esclarecida. Presume-se que ele tem origem na conjugação de duas palavras: mão e molengo, mão mole, mão que se move”.

O Mamulengo, seja em sua origem popular, seja pesquisado na fonte de suas características populares por bonequeiros eruditos, conserva sua irreverência. Sempre baseia-se na improvisação livre do mamulengueiro, com bonecos de luvas, varetas e varas, com personagens fixos e utilizando-se apenas de um roteiro básico da história que não é escrita. De acordo com a reação e do que é dito pelo público, os diálogos vão sendo construídos durante a apresentação, portanto, o resultado da criação do mamulengueiro depende do público que o assiste.

Ao pensar sobre esse exercício da improvisação livre, lembro-me de quantas vezes assisti à brincadeira do Mestre mamulengueiro (calungueiro) Chico de Daniel, observando quantas vezes ele repetia essa improvisação livre e me questionei: a repetição de um dizer não acaba virando um texto formulado? Talvez seja oportuno, em outro momento, levantar questionamentos sobre a criação exposta oralmente de mamulengueiros que optam por não adotar uma escrita formalizada. Nessa linguagem artística, determinados bonecos são mais aceitos em cena do que outros. Às vezes, isso interfere no resultado de uma ótima empatia, então os diálogos são mais rendosos.

Todo esse processo de criação improvisada, aberta em cena, mesmo que o público não tenha pleno conhecimento disso, causa uma expectativa de participação por parte de quem assiste. Mamulengueiros, bonecos e público se integram fazendo parte de um todo, assim consiste a brincadeira.

Ao ampliarmos nossa visão do que seja o Mamulengo, Cassimiro Coco, Babau e João Redondo, descobrimos que ele engloba a linguagem peculiar, o tipo de boneco e sua estrutura própria. Não é apropriado, por exemplo, referir-se ao Mamulengo dizendo ser uma “apresentação de espetáculo”, e não se diz a palavra “representar”, mas “brincar com bonecos”. Referimo-nos aos bonecos como brinquedo de uma brincadeira. Trata-se de uma manifestação nordestina ligada às crenças populares e à tradição. O termo “brincadeira” protege elementos vinculados à tradição dos folguedos ibéricos, sendo sobejantes da Commedia dell’arte.

Essa manifestação foi adotando tipos tradicionais de uma cultura popular antiga. Tipos que foram se transformando em bonecos e receberam, no Brasil, enquanto personagens e linguagem artística, denominações diferentes em cada região. Geralmente é transmitido pelo mamulengueiro, de geração a geração.

Existe uma variante quanto à denominação “Mamulengo” de acordo com a região: na Bahia, é conhecido como Mané Gostoso; em Minas Gerais, é Briguela ou João Minhoca; em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo chama-se João Minhoca; no Rio Grande do Norte é João Redondo, na Paraíba é Babau, e em determinadas zonas é Benedito; em Pernambuco é Mamulengo; em Sergipe é Cassimiro Coco; no Ceará, na zona urbana, é Mamulengo ou Cassimiro Coco, na zona rural é Cassimiro Coco, e na zona praiana é Calunga.

O boneco, em sua trajetória e forma popular, é exaltado em todos os idiomas. Em cada país adotam-se também nomes diferentes para o boneco. Na Argentina e Espanha, chama-se Títeres; nos Estados Unidos é Puppet; na França, Guignol; na Turquia, Karagós; na Itália, Fantoccini; em Java, Wayane; e na Alemanha, Kaspar.

Conhecido universalmente como uma forma de teatro popular, o teatro de Mamulengo foi considerado uma autêntica manifestação artística do homem. Conforme Hermilo Borba Filho, a tradição e a história dos bonecos são tão antigas quanto o homem. O Briguela, por exemplo, um dos tipos da Commedia Dell’Art que se transformou em boneco, desembarcou nos sertões de Minas Gerais há muito tempo.

Percebe-se, então, que o Mamulengo é um teatro de bonecos, mas nem todo teatro de bonecos é Mamulengo, pois no teatro de bonecos utilizam-se elementos mais sofisticados e eruditos. Contudo, é uma arte que possui força e riqueza de expressão. Principalmente no Nordeste, como em nenhum outro lugar, nota-se a força e o carisma dos bonecos. Para os estrangeiros, conforme a publicação do Institut Internacional de la Marionnette, Marionnettes em Territoire Brésilien (1994), o Mamulengo do Brasil é resultado de fatores antropológicos, sociológicos e econômicos. Ao mesmo tempo, pelos aspectos folclóricos, por sua simplicidade e irreverência, também contribuiu para a formação da cultura brasileira. Mesmo utilizando uma linguagem irreverente e improvisada, existe uma moral referente à cultura da comunidade onde a brincadeira acontece. Os temas abordados geralmente pertencem à realidade cotidiana, em que o poder, a submissão e a injustiça são recorrentes.

Trupes mambembes de histriões e saltimbancos cruzavam antigamente a Europa, realizando espetáculos populares em tablados. Esses atores mambembes – clowns, acrobatas, malabaristas, mas, às vezes, também cantores e poetas – se produziam sempre à margem dos teatros oficiais. Partindo das afirmações de Patrice Pavis, constatamos que o Mamulengo é uma arte extremamente mambembe. O mamulengueiro é um dançarino do boneco: usa seu próprio corpo para conduzir o bailado do boneco em cena e, por meio do seu veículo corporal e de suas emoções, dá vida a ele. Além disso, cruzam fronteiras realizando sua “brincadeira” em tendas, são poetas e cantores de suas histórias, e encontram-se à margem dos teatros oficiais, pois não dependem deles. Compartilham o “brinquedo” com o público nos quintais de suas moradas, nas praças, nas ruas e terreiros. Os antigos mamulengueiros e aqueles sobreviventes em sua forma original possuem estrutura própria de funcionamento e até mesmo uma relação hierárquica, no que se refere às funções e papéis. Em sua forma tradicional, o Mestre é a figura central, acompanhado de sanfoneiro, e zabumbeiro. Usa-se um linguajar simples, versado bem ao estilo popular.

É na cultura popular que reside o imaginário do povo diversificadamente formalizado. Assim, a cultura popular define-se pelo modus vivendi: as festas religiosas, as manifestações tradicionais populares, o vestuário, a habitação, as práticas de cura, o alimento e todo o seu cotidiano simbólico e imaginário.

É dentro desse contexto histórico e social da cultura popular, interiorana e sertaneja, que é possível constatar o quanto é fundamental o valor da pesquisa sobre o assunto. Com ela é possível nos situarmos dentro do contexto histórico, cultural epopular da tradição do Mamulengo: a ocupação, a moradia, o trabalho dos grupos, bonequeiros, mamulengueiros sertanejos e interioranos, que, ao cultivarem o campo, fecundam sua arte e contribuem com a cultura de forma direta, por meio das manifestações populares.

*Escritora, atriz-bonequeira, arte-educadora e produtora cultural.

Com Seus Alunos / Mamulengo em sala

Anos do Ciclo: 4° ao 7° ano

Área: Artes

Tempo de Duração: 10 aulas

Possibilidade interdisciplinar: Língua Portuguesa, História

Objetivos de aprendizagem: compreender que os objetos culturais fazem parte do patrimônio cultural das pessoas, valorizando sua preservação. Compreender os aspectos sócio-históricos referentes aos objetos culturais apreciados. Improvisar cenas teatrais.

1) Situe seus alunos a respeito do contexto histórico, social e cultural que propiciou o surgimento do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste – Mamulengo, Babau, João Redondo, Cassimiro Coco.

2) Fale com eles sobre a importância do reconhecimento do Mamulengo, Cassimiro Coco, Babau e João Redondo como Patrimônio Cultural do Brasil.

3) Agora, construa com eles uma pequena tenda para a brincadeira: confeccione os bonecos de luva com papel machê e elabore uma pequena apresentação utilizando os bonecos. Lembre-se que o improviso e a troca com o público são fundamentais para o desenvolvimento da atividade.

Saiba Mais

Cassimiro Coco de Cada dia – Botando boneco do Ceará, de Ângela Escudeiro.

Fisionomia e Espírito do Mamulengo, de Hermilo Borba Filho. Editora da Universidade de São Paulo, 1966.

Mamulengo – Um povo em forma de boneco, de Fernando Augusto Gonçalves Santos.

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