Editorial
Patética nostalgia
Dos bons humores do passado ao atual cenário sombrio


Tombstone, a cidade mais perigosa do faroeste selvagem transferiu-se, com contemporaneidade quântica, para o Guarujá, no litoral sul paulista. Ali se repetem cenas cinematográficas de filmes empolgantes para as plateias do século passado. Dá-se apenas que, desta feita, as balas e suas consequências mortais são verdadeiras. Desenrola-se este enredo na reportagem de capa desta edição, mas vale a pergunta aos meus botões assustados: algo igual se daria hoje em países civilizados e democráticos? A quem atribuir as responsabilidades pela tragédia?
Falam eles em um mar de responsabilidades, a remontar à feroz colonização predadora. A incrível aprovação que a refrega recebe do governador Tarcísio de Freitas nega o mais elementar dos saberes jurídicos: a polícia prende e entrega os autores à Justiça. Aí está o problema: o Brasil é escravo de leis promulgadas com o exclusivo propósito de proteger a desigualdade, fonte do poder dos mais fortes. Quem sabe tudo se deva à transferência de D. João VI, o soberano fugitivo de Lisboa para o Rio de Janeiro no momento em que as forças napoleônicas transpuseram as fronteiras lusitanas.
Portavam de uma longa avançada pela Europa as ideias da Revolução Francesa e tal era o risco imposto à corte lusitana. De todo modo, eis o fator determinante da injustiça nativa, hoje habilitada a até mesmo enaltecer a aprovação desabusada do governador Tarcísio. São estes os motivos pelos quais o mandachuva paulista se sente perfeitamente à vontade diante de fatos destinados a determinar, em países democráticos e civilizados, a intervenção do poder central. Dizem os botões que as peculiaridades deste país são marcantes e irremediáveis, além de precipitadas pela lei da selva.
Neste caldeirão sinistro fervem a ausência absoluta de um Estado de Bem-Estar Social, a ignorância monumental do povo brasileiro, os seus baixíssimos índices de escolaridade, entre os mais ínfimos do mundo. De alguma maneira, o Brasil é vítima de si mesmo, a despeito das benesses recebidas a mancheias da natureza. Ou seria o caso de se indispor com o próprio Deus? Seria possível na terra que supõe ter Cristo nascido em Belém do Pará? Basta acompanhar uma sessão evangélica, fluvial espetáculo de rostos voltados para o céu e mãos postas, para entender a profundidade de um fenômeno cujo númeno, diria Platão, é a credulidade, a ingenuidade, a insegurança crônica, a falta de responsabilidade na lida com a realidade.
E isto só se via no cinema – Imagem: 20th Century Fox
Longe de um confronto com o Altíssimo, busca-se a transferência: a explicação dos eventos e de suas razões insondáveis fica por conta Dele. No mais, a vontade suprema aparecerá inevitavelmente e caberá ao crente a tarefa de seguir a indicação transcendente. Me ocorre, de súbito, meu irmão Luis, dois anos e meio mais novo, que alimentava desde a adolescência uma insólita ojeriza em relação à categoria dos astrônomos, entregues à tentativa impossível de sondar o insondável, mesmo com os telescópios de Jodrell Bank.
Aquele olhar de um ser humano destinado à morte chega a ser tolo, ou mesmo néscio, ao se dirigir para o universo sem-fim. A curiosidade é própria da natureza humana, ainda assim implica tempo perdido diante da eternidade. Enquanto os Clanton estão na defensiva no O.K. Corral e Wyatt Earp prepara-se para atacar, a refrega de Guarujá incendeia a praia, outrora tão sorridente, dona inclusive de um cassino onde um jovem da família Morganti, reis do açúcar na época, perdeu um carro Studebaker no carteado. •
Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Patética nostalgia ‘
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.