Editorial

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O quartel de Abrantes

As consequências da lava jato deixam até agora tudo como Dantes. E até com novidades

O quartel de Abrantes
O quartel de Abrantes
Imagem: Arte: Pilar Velloso com fotos: Rovena Rosa/ABR, Lula Marques/ABR e Michel Dantas/AFP
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É do conhecimento até do mundo mineral que o Brasil é o país onde tudo é apurado minuciosamente, mas nada é decidido quando a apuração termina. Para exemplificar, a Operação Lava Jato, tão daninha para o País, até hoje não mereceu a punição unânime dos poderes da República, a começar pelos sentinelas da Constituição. Neste exato instante, está em curso a tentativa de adiar o processo que já espana o banco dos réus para receber o ex-procurador Deltan ­Dallagnol, covardemente encaminhado ao foro privilegiado por sua condição de recém-eleito a deputado federal.

Está em curso a tentativa de alargar o processo, como seria inevitável, para incluir Sergio Moro e sua mulher, ambos envolvidos da ponta dos sapatos à raiz dos cabelos. É fato extraordinário: uma operação que tantos males causou ao Brasil ainda não teve o devido julgamento pelos inúmeros crimes cometidos. Durante a prisão de Lula, ­CartaCapital convidou o jurista italiano Luigi Ferrajoli para analisar com a necessária competência o andamento do processo. O convidado não hesitou em apontar os delitos praticados à sombra da República de Curitiba.

O energúmeno demente agradece aos céus o inesperado presente recebido por obra do processo que prendeu Lula sem provas, e apontado à execração mundial por Luigi Ferrajoli – Imagem: Marcos Corrêa/PR e José Luis Salmeron/Notimex/AFP

Segundo Ferrajoli, resultavam da Operação Lava Jato o impeachment da presidenta Dilma e a prisão do ex-presidente Lula, levada a cabo ao sabor de “três aspectos inconfundíveis das práticas inquisitivas”. A saber: “A confusão entre juiz e acusação”. Surge em cena, portanto, a figura do juiz inquisidor: “Promove a acusação, formula as provas, emite mandados de sequestro e de prisão, participa de entrevistas à imprensa, ilustrando a acusação, antecipando o juízo e, enfim, pronuncia a condenação de primeiro grau”.

Sergio Moro é o protagonista absoluto do processo, além de promover a acusação, emite a sentença de 9 anos e 6 meses de reclusão por corrupção e lavagem de dinheiro, e interdição para o exercício de funções públicas por 19 anos. Conclui Ferrajoli: “Avulta o poder despótico do juiz inquisidor”. Forma-se, assim, a premissa de um procedimento dedutivo que assume como verdadeiras somente as provas que o confirmam. Prossegue o jurista italiano: “A terceira característica inquisitória é, enfim, a assunção do imputado como inimigo e sua demonização por parte da imprensa”.

O impeachment de Dilma Rousseff leva o Congresso ao delírio exultante – Imagem: Andressa Anholete/AFP

A antecipação do juízo caracteriza também uma entrevista, ao Estadão, do Tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul, o qual declara candidamente que a sentença do primeiro grau é tecnicamente irrepreensível. Comenta Ferrajoli: “Semelhante antecipação do juízo, segundo os códigos de processo de todos os países civilizados, é motivo óbvio e indiscutível da interferência indevida a justificar o afastamento do magistrado”. Ferrajoli reconhece a qualidade da Constituição Cidadã formulada pela Constituinte comandada pelo doutor Ulysses.

“Veio à Luz a incrível fragilidade do constitucionalismo de primeira geração, em relação ao qual o Brasil deveria refletir seriamente”, diz Ferrajoli

Mas os penosos eventos institucionais que atingiram dois presidentes “trouxeram à luz a incrível ­fragilidade do constitucionalismo de primeira geração, isto é, das garantias penais e processuais dos direitos de liberdade, uma fragilidade sobre a qual a cultura jurídica e política democrática no Brasil deveria refletir seriamente”. A admoestação parece dirigida especialmente ao arcabouço jurídico brasileiro e ao seu Supremo Tribunal tantas vezes leniente.

Cercado pelo povo, Lula caminha ao encontro dos federais que irão prendê-lo – Imagem: Paulo Pinto/Instituto Lula

Assim como as palavras do jurista italiano poderiam orientar a acusação aos criadores da Lava Jato, aparece agora um forte motivo para engrossar o caldo, a denúncia de corrupção relatada na reportagem de capa, como se não bastassem outras consequências diabólicas que se originam na Lava Jato. Difícil hierarquizá-la, mas cabe à perfeição à eleição do energúmeno demente Jair Bolsonaro, na ausência de Lula em 2018. E também o bolsonarismo a invocar a intervenção militar, a fomentar o poderio do presidente da Câmara,­ ­Arthur Lira, a estimular a violência policial, a precipitar os eventos do dia 8 de janeiro com a invasão do Planalto, fornecem a prova de que os poderes da República são engrenagens desconectadas umas das outras.

Por aqui, 30% da população morre de fome, enquanto outros 30% não sabem se conseguirão jantar, e tropeçamos cada vez mais em quem dorme na calçada e somos o segundo país mais desigual do mundo, mais desigual que os africanos, enquanto a casa-grande e a senzala ainda estão de pé etc. etc. À moda tipicamente brasileira, não falta quem se empenhe para silenciar aquela denúncia. Assistimos, conforme o hábito, ao embate entre o Bem e o Mal e o prognóstico, para não fugir ao andor nativo, é ainda incerto. •

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O quartel de Abrantes’

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