Editorial
O país do absurdo
Enquanto casa-grande e senzala ficam de pé, a minoria rica divide a torta do poder


Certo dia remoto, disse a Lula, velho amigo, que a situação no Brasil só seria resolvida por muito sangue nas calçadas. Reagiu ele com bonomia, mas convidou-me a alimentar a esperança. Em quê exatamente não declinou. Evitei falar dos meus mestres de vida, de Kant a Antonio Gramsci, passando por Spinoza. Algo é certo: esperança não tenho em relação ao futuro de um país que não somente é tão desigual, mas também primitivo, complexado, ignorante. Nestas condições, o resultado é tão fatal quanto inelutável. Fiquemos, no entanto, no curto espaço das nossas vidas.
Desde o início, cometeu-se o pecado original ao seguir pelo caminho da conciliação: por aqui se destina simplesmente às desavenças entre as elites na hora de cortar o bolo do poder. Refiro-me à minoria rica a habitar a casa-grande, enquanto os pobres, maioria fluvial de comportas rompidas, haverão de se conformar com sua miséria de largo espectro. Daí sermos aferrados à Idade Média da casa-grande e da senzala, ainda e implacavelmente de pé. Aliás, a dicotomia daninha é cada vez mais evidente.
Depois de eleito para o primeiro mandato, Lula algumas vezes referiu-se à casa-grande e logo desistiu. As consequências de um passo em falso acontecem com presteza. Quanto haveria de ser demolida, continua de pé e o Brasil não emerge da sua condição de país caudatário, exportador de commodities num cenário dominado pelos miasmas do desmatamento. À tradição golpista ardorosamente renovada de um exército cujo patrono, Duque de Caxias, notabilizou-se pelo genocídio do povo paraguaio, somente a digna presidente Dilma Rousseff se dispôs a resistir, e à torpe manobra do surfista Michel Temer, corrupto contumaz, a sitiar a golpeada no Palácio da Alvorada.
Em praça pública a homenagem ao grande genocida – Imagem: Redes sociais
Não é, certamente, responsabilidade da natureza a irrefreável decadência do país dono de outro destino. Culpados seus governantes no galope do tempo sempre a favor da minoria gananciosa, com o contraponto esquálido da maioria faminta, frequentemente obrigada a viver ao relento pelas calçadas das metrópoles, ou debaixo de pontes e viadutos, intérprete involuntária de uma tragédia. Permito-me repetir neste mesmo espaço as palavras pronunciadas por meu fraterno amigo Raymundo Faoro, pensador imbatível pela sua obra, de Os Donos do Poder à A Pirâmide e o Trapézio, textos capitais para entender o Brasil.
Pois ele me disse, já às vésperas da morte, três meses depois da posse do novo presidente: “Já errou”. O erro era a escolha da política conciliatória, primeira fonte das desgraças atuais. O País é vítima de si mesmo. Ao povo, em lugar de um Estado do Bem-Estar Social, deram-se as migalhas caídas da mesa dos poderosos, chamou-se Bolsa Família e serviu para enganar por algum tempo os beneficiários. Ao mesmo tempo, o governo não conseguia emergir de uma vetusta maneira de fazer política.
E, em nome do status quo, encarava como prova de máxima esperteza a eventual aliança com os inimigos. À Dilma disposta a pedalar nas encostas da economia sugeria que procurasse o aconselhamento de Michel Temer. Agora atira-se à composição de um governo de unidade nacional, com a participação dos seus piores inimigos e do próprio Brasil, a começar por Arthur Lira. Pretende-se navegar por amplas rotas, mas a realidade exibe um país cada vez mais encalhado.
As excelentes razões da alegria de Temer foram profetizadas pela clarividência de Raymundo Faoro – Imagem: Adriana Lorete/Prensa Três e Marcos Corrêa/PR
Algo neste instante constrange mais do que outros fatos, pelo menos aos meus olhos: os índices de baixíssima escolaridade a nos colocar em situações de penúria intelectual muito além das aparências. Quanto à violência e ao ódio a caracterizarem este momento, não esqueçamos que os governos do Brasil nunca puniram a ferocidade da ditadura nos porões da tortura e, mesmo à luz do dia, onde quer surgisse a oportunidade de sustar até a mais tênue tentativa de resistência.
Nomes de ditadores e torturadores, fardados ou paisanos, cabem até hoje nas placas de avenidas, praças, pontes, viadutos e edifícios em todo o País, acinte permitido quando não celebrado. A paternidade escancarada de muitas manifestações atuais é de uma obviedade dolorosa, sem exclusão de quadrilhas, como aquela a figurar na capa desta edição. O fenômeno ganha então uma dimensão espantosa, de proporções infinitamente maiores.
Romeu Zema, símbolo do caos atual para gáudio de Arthur Lira, vilão de elevado porte – Imagem: Marcello Casal Jr./ABR e Marina Ramos/Ag. Câmara
Na outra vertente, aquela da carência intelectual, recomenda-se aludir a Romeu Zema, governador de Minas Gerais, defensor de um projeto de secessão para colocar no comando do País os estados “mais inteligentes” por ele escolhidos. Haverá quem se orgulhe por ter nascido paulista, ou seja, cidadão do estado mais reacionário da pátria nativa.
Diga-se que o mundo não brinca em serviço. O livro vencedor de vários prêmios é assunto de um filme em exibição mundo afora intitulado Oppenheimer, sobre o cientista norte-americano capaz de valer-se da fissão do átomo descoberta por Enrico Fermi para inventar a bomba de hidrogênio que o presidente Harry Truman, com o propósito pretensamente nobre de apressar o fim da Segunda Guerra Mundial na frente oriental, mandou lançar em Hiroshima e Nagasaki. Consta nas entrelinhas da obra que Oppenheimer buscava a arma adequada para acabar com Hitler. Resta a dúvida: teria sido melhor destruir Berlim? •
Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O país do absurdo’
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