Editorial
O futebol perdeu sua magia
Na voz dos locutores, torcedores em vez de jornalistas, o esporte às vezes torna-se patético


Quando, ainda adolescente, cheguei ao Brasil, disseram-me que este era o país do carnaval e do futebol. Assim, decidi fundir o folião e o torcedor em uma única personagem. Antes de cair na gandaia, o cidadão cuidara de tirar o anel de doutor, “para não dar o que falar”. E em lugar de chá com torradas tomou goles de cachaça, vestiu uma camisa listrada e saiu por aí. Em todo caso, sorria quando o povo dizia “sossega leão”. Para melhor entendimento da figura, colocara um canivete no cinto e carregava um pandeiro na mão.
Fatal gol de Ghiggia… – Imagem: AFP/Arquivo
Logo também percebi que o Brasil, de um canto a outro, se deixava tomar pelo sonho de um campeonato mundial de futebol. E esta era a paixão de todos. Em termos de balípodo, avassaladora era a rivalidade entre Rio e São Paulo. Quando do primeiro campeonato mundial disputado no Brasil, em 1950, o treinador Flávio Costa escalava times diferentes, caso a partida fosse disputada em São Paulo ou no Rio, e o problema central residia na linha média. A paulista, formada por Bauer, Rui e Noronha, e a carioca, por Eli, Danilo e Bigode. O fatal gol de Ghiggia, o matreiro ponta-direita da seleção uruguaia, depois de driblar Bigode, silenciou a torcida do Oiapoque ao Chuí, enquanto no estádio lotado circulava a imagem da seleção brasileira campeã do mundo.
… e o time campeão na Suécia – Imagem: Bild TT News/AFP
Diga-se que o Uruguai vinha com um time de todo respeito, com destaque para o meio-campista Obdulio Varela e o meia-armador Schiaffino, sem contar a firmeza do veterano goleiro Maspoli. O desastre abalou por demais o país de 70 milhões de habitantes, que via no futebol a prova de uma grandeza sempre almejada. A mudança básica se dá com a chegada de Pelé e uma série de vitórias, completada pelo triunfo de 1970 contra a seleção italiana, com a contagem de um irretorquível 4 a 1, em Guadalajara, no México.
Blatter, especialista em impedir a vitória dos adversários – Imagem: Robert Knosowski/AP
Infelizmente, a federação mundial estava nas mãos de João Havelange e seu então genro Ricardo Teixeira, especializados, entre outras características, em impedir vitórias de adversários em condições de dificultar a ascensão do Brasil. Contaram com a contribuição de um mestre na matéria, o suíço Joseph Blatter, todos unidos, firmemente, quando a tramoia já havia sido selada. Quanto à minha adequação à paixão nativa, ao pousar no país do futebol, de saída esmerei-me na prática de chutar as latas surgidas em meu caminho.
Ricardo Teixeira e João Havelange confirmam a sua celerada parceria – Imagem: Wilton Júnior/Estadão Conteúdo
Resta este sentimento, misto de afirmação e redenção, a brotar naturalmente da alma nativa. Sempre chega a hora de mostrar, de forma mais vigorosa e transparente, de que lado estamos. Exemplar deste ponto de vista é o comportamento da nossa mídia esportiva, integrada por torcedores em vez de jornalistas, todos dotados da convicção irremediável de que tanta paixão há de ser gritada a plenos pulmões. A bem da verdade, estava no ar há um bom tempo a lição de Bela Guttmann, ex-jogador e técnico de origem húngara. Esteve no Brasil para mostrar o quanto é prejudicial o tolo ufanismo que, inevitavelmente, nos devolve ao passado. Guttmann foi treinador do São Paulo, em 1957, e apontou a conveniência de se buscar o exemplo do futebol europeu, ainda determinante dos melhores resultados.
Bela Guttmann conhecia o caminho das pedras – Imagem: SLB
Aos desastres provocados pelo treinador Tite juntam-se as atuações comandadas pela atual gestão para relegar o futebol brasileiro a um estágio francamente primitivo, como se tudo tivesse de ser reiniciado para justificar alguma esperança em relação ao futuro. Os nossos campeonatos, os regionais e o Brasileirão, embora acompanhados com fervor pela cobertura exaustiva dos comentaristas e das mesas-redondas, não apontam para progresso algum. A vibração dos locutores é patética e patético é também o próprio futebol atual, praticado diante de plateias dispostas a se deixarem iludir, esquecidas dos sentimentos que outrora as tomavam. •
Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O futebol perdeu sua magia ‘
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