Editorial

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O capataz vestiu farda

Como se deu a criação de um exército de ocupação interna em lugar de zelador das fronteiras

O capataz vestiu farda
O capataz vestiu farda
A escravidão criou o monstro – Imagem: Jean-Baptiste Debret/Coleção Itaú Cultural
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Qual seria a data mais adequada para iniciar este texto? Escolho o momento da chegada ao Brasil de D. João VI, rei de Portugal em fuga na iminência da invasão do país pelas tropas napoleônicas comandadas pelo general Junot. As vitórias colhidas pelo Corso, dos Alpes às pirâmides, como escreveu Alessandro Manzoni, espalharam pelo planeta a lição redentora da Revolução Francesa. O soberano luso, ao transferir a corte de Lisboa para a sua maior colônia, simboliza a recusa da contemporaneidade mundial naquele exato instante, a perdurar até hoje.

Deodoro, segundo a hagiografia fardada – Imagem: Henrique Bernadeli/Acervo da AMAN

Além de jamais tomar banho, D. João VI marcava sinistramente aquela discrepância que o tempo não curaria. Estabeleceu-se assim a escravidão mais duradoura da História e o primado da chibata dos capatazes e dos capitães-do-mato a serviço da casa-grande, incumbidos de capturar escravos fugidos e matar índios. A demonstração tão peremptória da ferocidade colonizadora está claramente na origem dos futuros comportamentos de um exército de ocupação chamado para garantir a ordem interna em lugar das fronteiras da imensa colônia. A ordem figurava na visão positivista de progresso.

Quando a tropa napoleônica alcançou Portugal, D. João VI exportou seu atraso para o Brasil – Imagem: iStockphoto e Acervo da Biblioteca Nacional

Não é por acaso que patrono destas chamadas Forças Armadas é Caxias, genocida do povo paraguaio subjugado pelas baionetas dos mais fortes. A partir da demonstração do poder absoluto, sempre a serviço da casa-grande, os homens armados de chicote vestiram uniformes, como se pretendessem conferir dignidade à sua atuação useira e vezeira. A própria transformação do sistema monárquico em republicano foi obra do golpe do marechal Deodoro, logo substituído por Floriano Peixoto. Pretendeu-se assim fundar uma república fardada a favor da escravidão, que se constitui, inexoravelmente, na maior desgraça brasileira.

O golpe de 1964 gerou no Brasil uma ditadura de vinte e um anos, cujas consequências perduram até hoje – Imagem: Arquivo/Estadão Conteúdo e Arquivo Nacional

Os golpes militares para manter o ­status quo desejado e imposto pelos escravagistas ritmam o enredo do País, até se parecerem com o diapasão da própria História. Derradeiro pareceu ser o golpe de 1964, destinado, segundo os golpistas, a pôr a casa em ordem para devolvê-la então ao poder civil. Tratava-se de hipócritas estrategistas de uma pretensa paz. O cenário da política nativa não cessou de ecoar o ruído e a poeira dos golpes, e ainda de tentativas frustradas de golpe, em uma sequência apressada e espantosa. Depois da primeira eleição de Lula, fomos obrigados a assistir à derrubada de Dilma Rousseff, democraticamente eleita e segregada à força no Palácio da Alvorada por um surfista emérito como ­Michel Temer, corrupto até a medula e até hoje livre de surgir em cena com expressão de pacificador ilibado.

Temer: surfista do golpe e corrupto contumaz, sempre impune – Imagem: Evaristo Sá/AFP

Dois facínoras apresentados pela maioria da mídia brasileira como juristas, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, desferiram aquela ação chamada Lava Jato, criminosa de todos os pontos de vista, de sorte a prender Lula para alisá-lo das eleições de 2018 e eleger o energúmeno demente Jair Bolsonaro. Está claro que nada disso aconteceria em um país civilizado e democrático, sendo evidente, além do mais, a doença que acometia o eleito. Atos como este por aqui são rotina. De fato, o Brasil digeriu tranquilamente aquele pleito e os seus jornalistas se apressaram a respeitar o evento, qual fosse típico de uma realidade democrática. Nem por isso o script sofre alterações, todos vivem o pesadelo como um sonho comum, sem o menor abalo, de sorte a tornar especialmente difícil onde mora o delírio.

Firma-se uma pavorosa confusão. O País e o seu povo confundem, sem o mais pálido sintoma de sobressalto, a normalidade com o caos. Uma análise fria, mas infelizmente correta, iria necessariamente obrigar a percepção de que vivemos fantasmagoricamente uma fantasia ­monstruosa e acachapante, sem nos darmos conta da realidade dos fatos. O barco encalhou e a deriva está cada vez mais próxima. •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O capataz vestiu farda’

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