Editorial
No caminho do caranguejo
O Brasil anda para trás e o povo sofre, ignaro, as consequências do atraso, abandonado ao seu destino


Neste exato instante, meus céticos botões são crivados por inúmeras perguntas. Antonio Gramsci, o pensador sardo, recomendava ceticismo na inteligência e otimismo na ação. Confesso que agora nem otimista consigo ser. Mesmo assim, as perguntas se apinham. Por que Raymundo Faoro, já no leito de morte, murmurou “ele já errou”, logo após a posse de Lula, em janeiro de 2003?
A razão é simples: no coração e na mente, o presidente é, sobretudo, um conciliador, atendendo à vocação de um povo que sempre deixa de cumprir tudo quanto dele haveria de pretender o destino e ser revolucionário, tal como era o meu fraterno amigo. Era ele nascido na Vacaria, herdeiro de uma estirpe aguerrida das Dolomitas, impregnada pelos humores da terra natal. Responderia que um número incontável de brasileiros ainda traz no lombo a marca da chibata.
E qual seria o significado desta situação? Significa que o País ainda está atado à Idade Média e a casa-grande e a senzala permanecem de pé. Não será, decerto, possível escapar a esta lamentável, deprimente conjuntura sem demolir a vivenda dos ricos, pouquíssimos no confronto com as vítimas de uma desigualdade sem similares no mundo inteiro, engolfados nas consequências do abismo sem-fim entre uns e outros.
Estamos sempre à espera do salvador da pátria, mas a pátria é apenas dos donos do poder, placidamente incontestáveis. Há governadores que conseguiram fazer a limpeza dentro do território dos seus estados, sim, é verdade, logo adaptaram-se a uma nova ordem que de alguma forma cancela quanto já realizaram. Até que ponto vale recordar que padecemos a presença de Jair Bolsonaro? Foi obra de um processo esboçado oito anos atrás pela chamada República de Curitiba, a Lava Jato, nada mais que um crime cometido impunemente contra o Direito e o senso comum, febrilmente apoiado pela mídia nativa, a mesma que convoca a caserna sempre que os seus privilégios correm algum risco.
… e o ex-capitão afunda na sua demência – Imagem: Mateus Bonomi/Anadolu Agency/AFP
As Forças Armadas dispõem, no Brasil, de um poder moderador antidemocrático que as habilita a intervir quando surgem as ameaças de mudanças bruscas, como nuvens pretas no horizonte a carregarem a tempestade. Pois é, dá o ar da sua desgraça o lance de sempre. Confere aos cultores da memória de um genocida contumaz como o Duque de Caxias o poder que uma democracia autêntica lhes nega. A que democracia aludimos? A considerar, antes de mais nada, o abismo monstruoso entre ricos e pobres, a falta de um simples esboço do Estado de Bem-Estar Social, a ausência de saneamento básico em mais de 50% do território nacional, um terço da população morrendo de fome, enquanto outro terço não sabe se à noite poderá jantar, enquanto tropeçamos em compatriotas dormindo ao relento nas calçadas.
Um Congresso habitado pelas inúmeras bancadas de seitas em lugar de partidos rechaça sine die a chance de uma regulação da atividade das redes sociais, como se dá nas democracias mais avançadas do mundo. Quem, à luz dos ideais democráticos, é mais perigoso entre Arthur Lira e Jair Bolsonaro? O ex-capitão não passa de um energúmeno demente e em qualquer país democrático já teria sido afastado do poder, uma vez que não faltam argumentos convincentes para tanto, a começar pelo fato de que a presidência deste singular indivíduo foi obra de outras duas personagens nefandas, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, agora covardemente abrigadas à sombra do Parlamento sem que possamos entender por que ainda não foram cassadas de vez pelo STF, a fracassada sentinela da Constituição.
Como este desfecho possa ter sido possível é mais um típico mistério brasileiro, igual ao desencontro total entre os chamados Poderes da República, escancarados, inclusive, nestes dias pelo comportamento de Arthur Lira. Este presidente da Câmara está muito longe de ser um energúmeno demente. Trata-se de um esperto manipulador de momentos políticos conturbados, capaz de cuidar exclusivamente dos seus próprios interesses, ao levar na conversa vários militantes da boa-fé. Lira nutre grandes e profundas ambições e move-se com extrema habilidade nesta floresta de enganos em que se tornou o Congresso Nacional. •
Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No caminho do caranguejo’
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