Editorial

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Fora de sintonia

Em suas andanças pelo exterior, Lula tem a oportunidade de tomar preciosas lições sobre a regulação da mídia

Fora de sintonia
Fora de sintonia
Aplaudido em Paris quando denuncia as prepotências do deus mercado. Nas suas andanças pelo exterior também conversou com presidentes e primeiros-ministros de países que, pelo menos há 50 anos, praticam o Estado de Bem-Estar Social – Imagem: Anna Kurth/AFP
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Certo está o presidente Lula quando denuncia as prepotências do deus mercado, frequentemente bem-sucedidas. Certo está também quando aponta as benesses que ao ­País foram proporcionadas pela natureza, dadivosa como antecipou Pero Vaz de Caminha, ao se empenhar como garoto-propaganda do investimento estrangeiro em uma terra tão convidativa. Mesmo assim, sabemos perfeitamente quão daninha seria a privatização de patrimônios do Brasil e do seu povo contra os imperdoáveis projetos, Petrobras e Vale, conforme as intenções suicidas do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Deste ponto de vista, muito grave é a privatização de um instrumento indispensável à afirmação duradoura da democracia. Vale acentuar a importância de uma televisão de Estado, em proveito de uma sociedade plural. Não é o que se dá no Brasil de hoje, a exibir descaradamente a ingenuidade e a ignorância de um povo cuja maioria vive com fome e sem consciência da sua desgraça, para confirmar a monstruosa desigualdade que, historicamente, assola o País. Disputamos ainda com alguns países africanos e asiáticos o espantoso galardão de mais desiguais do mundo, consagrado pelo abismo a dividir a minoria rica da larguíssima maioria abandonada ao seu destino.

Bem que Polichinelo poderia atuar no cenário político brasileiro – Imagem: Redes sociais

Não está claro o gênero da encenação levada por Lula mundo afora. Ocorre-me a Commedia Dell’Arte, enredo e personagens fixos. Refluiu ao longo do tempo para um espetáculo de títeres, exibido até hoje em praças periféricas da Itália, em teatrinhos a enfeitar o espaço apinhado de espectadores e dominado, entre outras, pela figura de Polichinelo, inicialmente diabólica, embora, com o tempo, tenha assumido comportamentos sobretudo cômicos. No começo, a justificar a opção pelo Mal, representava a fragilidade emocional do ser humano e as ciladas destinadas a persegui-lo vida adentro.

O Brasil padece com a falta de uma televisão de Estado, em proveito de uma sociedade plural

Nas suas encenações, Lula também se dirige a audiências acostumadas ao Estado de Bem-Estar Social, favorecido exatamente por uma televisão de Estado capaz de controlar os canais privados, não com o propósito da censura política, mas para o resguardo dos valores morais e éticos dos usuários do aparelho. Assim é nos países democráticos e civilizados, bem ao contrário do que ocorre na televisão nativa.

Trata-se de uma televisão impune na sua atuação daninha de todos os pontos de vista, capaz de acentuar o nosso atraso, no caso igualitário, de sorte a não poupar ricos e pobres. À luz de tanto descalabro cometem-se até mesmo crimes gravíssimos, com a veiculação de uma publicidade deliberadamente enganosa, voltada febrilmente à exploração da credulidade nativa. Aquele que haveria de ser instrumento de congraçamento e conhecimento torna-se fator de desagregação, de afastamento intencional da realidade. Imperdoável a ausência de um governo controlador.

Na crônica esportiva, já houve quem atuou de forma civilizada, a exemplo de Pedro Luiz Paoliello. Agora resta a grotesca torcida dos que se dizem jornalistas – Imagem: Redes sociais

Permite-se, no Brasil, o pandemônio consignado, desde a gritaria silvícola de torcedores do futebol que se dizem jornalistas, até o desplante da emissora de um certo sexagenário chamado Tutinha, neto do Marechal da Vitória, Paulo Machado de Carvalho, tutor de um programa intitulado Os Pingos nos Is, que exibe um bestialógico monumental interpretado por um grupo de cavalheiros solenes que transparentemente nada sabem a respeito de coisa alguma, embora ostentem nas suas diatribes ares de quem já decifrou todos os mistérios do universo. Há sempre a possibilidade da diversão.

De fato, podemos assumir este gênero de irradiações como exemplo do humorismo nacional, a não ser confundido, recomendamos, com a gritaria dos cronistas esportivos. Deste ponto de vista, já houve quem atuou de forma civilizada, e citaria, a propósito, Pedro Luiz Paoliello, locutor da derrota da Seleção Canarinho de 1950, secundado por um enxuto comentarista disposto a distinguir entre jogadores tecnicamente bons, mas taticamente maus. Agia com severidade irrepreensível. Tudo mudou no momento do ingresso no gramado de sua majestade Pelé, a partir da vitória na Suécia, em 1958, com um Pelé adolescente habilitado a humilhar jogadores como Nordhal, Gren e Liedholm, até então muito reputados.

Aqui neste jogo de vôlei entre Brasil e França o jornalismo esportivo brasileiro prova ser torcedor uivante – Imagem: CBV/Volleyball World

Há países europeus onde a televisão de Estado passa a ser custeada pelos impostos pagos automaticamente por quem compra o aparelho. Por aqui, num panorama deplorável, destaco a presença das televisões entregues a facções pretensamente religiosas que chegam a formar bancadas próprias no Parlamento e prontas a cobrar dos seus ludibriados fiéis o dízimo chamado a elevar o peso da contribuição fiscal. •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

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