Editorial

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E fez-se o caos

O povo brasileiro tratou de esquecer o evento mais empolgante da sua história, a campanha das Diretas Já

Osmar Santos comanda o espetáculo na Sé paulistana por competência e fé política - Imagem: Fernando Santos/Folhapress
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O Brasil soçobra em um mar raso de erros, lacunas, pecados. Na sua própria incapacidade. Na ausência de líderes capazes de abrir os olhos e a consciência do povo. Este é a primeira vítima de tanto abandono ao seu destino de ignorância e miséria. Há quem suponha que uma forte vontade democrática leve os eleitores, tão frequentemente e estupidamente festeiros, a formar filas nas bocas das urnas, quando o resultado do pleito está longe de espelhar impulso cívico. Voto útil houve, mas a favor de Jair Bolsonaro, o energúmeno demente, de passado parlamentar inexoravelmente indicativo de sua índole malsã.

Na ausência de líderes, criou-se o caos. Fosse autêntica a vocação democrática, um pleito presidencial aconteceria em seguida ao impeachment de Dilma Rousseff e a entronização de Michel Temer, corrupto até a medula, como é do conhecimento do próprio cais do porto de Santos. Muito simbólico aquele golpe perpetrado pelos próprios poderes da República, conluiados na tarefa os integrantes daquelas casas, com exceção de Alexandre de Moraes.

Na qualidade de presidente do TSE, além de togado pelo STF, cumpriu com diligência e senso de responsabilidade o seu papel. Os demais continuam aboletados nos seus assentos, conforme verificamos nas transmissões diárias pela televisão, fato inédito na história das sentinelas da Constituição mundo afora. Trata-se de casas escondidas dos olhos do povo a cumprir seus trabalhos em indevassável silêncio. Aqui não, apreciam a exibição cotidiana no vídeo, envoltos nas ­suas asas de morcego.

No golpe contra Dilma, acrescentemos os congressistas unidos em um Centrão de péssima lembrança, enquanto Lula, ao assumir a Presidência, guarda o vezo deplorável de recorrer à conciliação das elites. Já lhe perguntei que elites são estas, em um país onde a população é brutalmente dividida entre poucos ricos, desmesuradamente ricos, e milhões e milhões de pobres, impeditivo fatal da democracia autêntica no Brasil, o segundo mais desigual do mundo. Em primeiro nesta lamentável classificação fica a África do Sul, menos desiguais os demais países africanos.

Já houve líderes verdadeiros, como as figuras da capa desta edição. Sabiam o que estavam a fazer e conheciam a fundo as dificuldades da empreitada. Foram em frente com a coragem e a disposição de agir a qualquer custo. O derradeiro movimento popular capaz de lotar praças e avenidas foi a campanha das Diretas Já. Ali, em último lugar na fila das autoridades ficava Tancredo Neves. Acabava de regressar de uma visita ao mosteiro de ­Caraça, viagem de carro de seis horas, passadas ao lado do general Golbery do Couto e Silva, ideólogo do golpe de 1964 e criador do calendário da distensão que o ditador Ernesto Geisel tentou obstar, sem sucesso.

O dr. Ulysses e o governador Montoro me pedem para convencer Lula a participar

Diga-se que o evento das Diretas Já reuniu na Praça da Sé, em São Paulo, nada mais, nada menos, 500 mil pessoas, e outra multidão fluvial na Avenida Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, da estação ferroviária à Candelária, a representar o momento mais expressivo na história do povo brasileiro. Havia também uma elite da cultura representada por pensadores do porte de Raymundo Faoro, Celso Furtado e Gilberto Freyre, e pela onipresença de Euclides da Cunha. E ainda apoiada por poetas da escrita, de Machado de Assis a Guimarães Rosa. País diferente era o de então.

Aqui cheguei com meus pais, em 1946, e lembro de uma São Paulo de 1,5 milhão de habitantes, a prometer o desenvolvimento das metrópoles australianas e canadenses. No cinema Broadway passava Pinóquio, na versão ridiculamente americana de Walt Disney, enquanto, em compensação, triunfava Rita Hayworth no Cine Marabá, na interpretação de Gilda. Os homens andavam de chapéu e meias brancas, as damas ostentavam uma moda pretensamente parisiense nos Jockey Clubs paulista e carioca, aos sábados e domingos.

São Paulo estava a caminho da industrialização, promovida por Getúlio Vargas, finalmente eleito democraticamente, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, e da Petrobras. A capital paulista alcançaria a condição de maior e mais avançado centro industrial da América Latina. Sim, houve tempos muito melhores. E o confronto com a situação atual é profundamente vexatório.

Quando o doutor Ulysses deu a largada da Campanha e André Franco Montoro era governador de São Paulo e Leonel Brizola do Rio de Janeiro, graças a uma etapa da chamada distensão, fui convocado pelo líder de uma oposição a englobar no MDB todos os inimigos do regime. Secundado por Montoro, e sabedor da minha boa relação com Lula, chamou-me para convencer o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema a assumir seu lugar no palanque erguido em frente à Catedral, na primeira manifestação marcada na praça paulistana da Sé para 25 de janeiro de 1984, dia do aniversário da cidade. E no palanque haveria de caber também o cardeal-arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, verdadeiro pastor de muita fibra e coragem.

No dia 4 de janeiro, almocei com Lula e ouvi dele: “Claro que topo”. E topou. Até então, os petistas esmeravam-se no patrulhamento de quem não rezava por seu catecismo, mas, 20 dias depois, as bandeiras vermelhas despontavam por sobre a multidão. O confronto entre aqueles momentos e os atuais é desolador. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “E fez-se o caos”

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