Editorial
Como explicar a mudança?
Doloroso confronto entre o passado promissor e o presente assustador


Depois do ataque desferido na Esplanada dos Ministérios pelos hunos de camiseta canarinho, enrolados na nossa bandeira inspirada claramente pelo reacionarismo positivista na escrita a recomendar Ordem e Progresso, sobra o Brasil velho de guerra, segundo país mais desigual do mundo, onde o poder militar se levanta mais do que qualquer outro. Trata-se de entraves fatais ao exercício da democracia, embora nunca percamos a oportunidade de entoar um mentiroso hino nacional. Habitamos um país prodigiosamente bafejado pela natureza, no entanto incapaz de aproveitar suas benesses, quando não criminosamente as destruímos. Ainda vivemos uma tardia Idade Média a manter de pé casa-grande e senzala.
Os analistas midiáticos, do alto de sua notória sabedoria, tendem a atribuir ao ex-capitão Bolsonaro, energúmeno demente, a origem de todos os males. E é inegável ter sido ele quem destampou a panela de pressão do ódio e da raiva. Foi eleito, porém, e no governo conseguiu dividir o País, de sorte a perder as últimas eleições contra Lula em busca do seu terceiro mandato, alcançando ao cabo uma vantagem milimétrica. Convém, de qualquer maneira, evitar enganos e quimeras. Por ora, só nos resta constatar a situação de um país ainda distante da contemporaneidade do mundo civilizado e democrático.
Fique claro, entretanto: o povo não é o responsável por seu próprio atraso e primarismo, o povo foi sempre abandonado ao seu destino inevitável de ignorância e miséria. O presidente Lula verte lágrimas quando toca no assunto da pobreza, mas não basta chorar. Em relação aos eventos de domingo 8 de janeiro, vale registrar que a reação das autoridades ganhou fôlego ao passar das horas, graças antes de mais nada ao empenho do ministro Alexandre de Moraes, a bem da admiração e do respeito que por ele temos desde a sua nomeação a presidente do TSE.
O mesmo povo que lotou a praça da Sé em São Paulo entrega-se ao delírio barbárico 39 anos depois. Que aconteceu?
Nada disto invalida as nossas dúvidas em relação à maturidade do País, vítima de falhas originais a serem corrigidas somente com o combate efetivo à disparidade social, enquanto não livrarmos o Brasil da postura de súcubo do poder dos quartéis. E me ocorre a inspiradora figura de Ulysses Guimarães, o doutor Ulysses, comandante das fluviais assistências da campanha das Diretas Já. Lembro com absoluta precisão o dia em que o doutor Ulysses e André Franco Montoro, então governador de São Paulo, me chamaram com um pedido: convidar Lula a participar da campanha, com lugar cativo no palanque daquele evento.
Sobre uma multidão de 500 mil pessoas desfraldavam-se à brisa da tarde bandeiras do Brasil e do PT, e lá estava Lula entre as autoridades, enquanto Tancredo Neves se escondia atrás dos companheiros da jornada cívica. Pergunto agora aos meus perplexos botões: o que houve com o povo brasileiro 39 anos depois? O problema está na falta de liderança, que o doutor Ulysses nunca perdeu, ou daqueles que hoje mandam, os fardados que tanto tememos?
Imagem: Fernando Santos/Folhapress
Lula está no palanque das DIRETAS JÁ na cerimônia orquestrada por Osmar Santos, mais um grande amigo de CartaCapital
Quando aquela multidão aglomerada sem deixar frestas na Praça da Sé, no aniversário de São Paulo, refluiu pacificamente, um grupo mais agitado saiu pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio até a Paulista e ali incendiou uma perua da Rede Globo, emissora ainda sob o comando de Roberto Marinho a duvidar que a morte pudesse atingi-lo e a condenar no vídeo “o levante marxista-leninista”. A pergunta é inevitável: o que ocorreu com aquele povo? Seria a discrepância atribuível ao salto geracional? Os pais não teriam educado os filhos, ou não quiseram?
A campanha das Diretas Já lotou praças e avenidas Brasil afora e dela o doutor Ulysses surgiu como a grande liderança, para levar à Presidência aquele que se escondera no palanque. Ainda a caminho da posse, Tancredo adoeceu até se esconder atrás das nuvens do destino e ser levado no enterro por muitos daqueles que não haviam sufragado seu nome. Mas festa é festa. José Sarney, que figurava na chapa vitoriosa como vice, assumiu imediatamente a Presidência, graças ao pretendido de caso pensado erro constitucional.
Sobrou para o doutor Ulysses, com sua generosa aquiescência, a tarefa de comandar uma Constituinte de meio período, capaz, de todo modo, de elaborar uma Carta digna de uma límpida democracia. Voltas e reviravoltas do destino ocorreram ao longo da rota fadada ao desencontro com o porto seguro. Confusão até as fronteiras do caos estabeleceu-se nas altas esferas e a conjuntura degringolou até os dias de hoje, sem alterar basicamente os andamentos políticos, econômicos e sociais do País atado a problemas até hoje não resolvidos, pelo contrário, agudizados pelo golpe de Estado praticado contra Dilma Rousseff, pelos desmandos imperdoáveis da Operação Lava Jato, conduzida pelas torpes figuras de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, e pelo governo maligno do usurpador corrupto Michel Temer.
Em uma sequência de erros, falhas, crenças malpostas, ameaças de golpe, até culminar com a eleição do ex-capitão Jair Bolsonaro, a se beneficiar com a prisão de Lula em Curitiba. É um enredo soturno que chega ao terror com o governo de terra arrasada entregue a um energúmeno demente para desaguar nos turbulentos dias atuais. E aqui está o Brasil a carregar os problemas de sempre e a sonhar com a democracia impossível. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Como explicar a mudança?”
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