Editorial

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A origem do mal

O Brasil ainda sofre as consequências da mais torpe, velhaca, feroz escravidão do Ocidente autoproclamado civilizado e cristão

A origem do mal
A origem do mal
Na versão de Debret, Caim açoita Abel, para deleite do senhor do engenho – Imagem: Coleção Itaú Cultural
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Uma longa conversa com Umberto Eco marcou profundamente meus pensamentos. O encontro deu-se em São ­Paulo, na casa de um amigo. Éramos ambos jovens, ele com 36 anos, eu com dois a menos. Naquele momento, eu saía do Jornal da Tarde e ia para a Editora Abril dirigir aquela que ainda não era a Veja, por atravessar uma prolongada gestação, esticada de janeiro a setembro de 1968. Observei que a revista seria, sobretudo, de textos. Victor Civita, dono da Abril, determinou: “Então, colocaremos também em tipo muito menor e leia. Veja e leia fica muito bem”. E assim foi.

Volto à conversa com Eco, recomendou-me a leitura de um livro de ­Robert Knox, intitulado Iluminados e Carismáticos, história das grandes heresias a pontilharem a trajetória da Santa­ ­Romana Igreja. Esclareceu Eco: “Aludo, entre outras coisas, aos fanáticos do Apocalipse, que medram em todos os cantos e ainda pregam a desgraça”. Foi a premonição de eventos futuros fadados a abalar o mundo. Disse também que percebia no Brasil, como próprio das raí­zes nativas, um tormentoso humor inquietante e maligno. Aquilo me tocou e voltou várias vezes ao meu pensamento.

Levou-me, enfim, a entender o significado mais profundo daquela sensação. Resultava, esta foi a minha conclusão, do confronto entre duas culturas irremediavelmente diversas e até antagônicas: a portuguesa, de um lado, e a das regiões africanas, onde os futuros escravos foram abduzidos à força e transferidos para o Brasil, do outro. Só podia ser este o motivo dos humores malignos captados por Eco a serpentea­rem por zonas miasmáticas dos comportamentos nativos com a perspectiva de um destino duradouro e inelutável.

Cerca de 5 milhões de africanos foram trazidos para o solo brasileiro, sem contar os que morreram ao resistirem à violência dos conquistadores ou nas galés dos navios negreiros. Para compreender melhor as consequências da ação lusitana, considere-se que 200 mil africanos tomaram o rumo dos Estados Unidos e por lá foi necessária uma guerra civil muito sangrenta entre o Norte e o Sul, para acabar com a escravidão. O herói abolicionista foi o próprio presidente Abraham Lincoln, que não hesitou em impor a lei libertadora contra os estados sulistas, produtores de algodão colhido pela mão escrava.

Umberto Eco, faiscador da memória – Imagem: Arquivo/AFP

Um bom livro para entender melhor aqueles eventos é, ainda e sempre, creio eu, E o Vento Levou, de Margaret ­Mitchell. Chegou às telas, obviamente, e volta e meia surge no vídeo das nossas televisões. O Brasil foi o último país a abolir oficialmente a escravidão, já no final do século XIX, mas a casa-grande e a senzala continuaram de pé. Hoje o País é mais desigual do que as terras africanas. Ali os escravos foram capturados, condenados ao castigo da chibata. Inúmeras situações Brasil afora até hoje exibem manipulação e hipocrisia, sem a mais pálida chance de emergir da retórica.

A arrasadora verdade é que, no Brasil, foi imposta a forma mais feroz e duradoura de escravidão, praticada ao longo de cinco séculos, ao perceber na população indígena a falta de ânimo e determinação para o trabalho pesado, conforme os propósitos dos colonizadores. Até hoje não demolimos a casa-grande e a senzala, e a mansão dos senhores aí está para impor as suas vontades contra o progresso recomendado pela escrita positivista a ornar nossa bandeira.

De volta à conversa com Eco, me pergunto se convém atribuir a ele a fisionomia de um cultíssimo e notável pensador ou de um escritor de best sellers sob medida para serem transformados em felizes entrechos cinematográficos premiados com ibopes nunca dantes navegados. O Nome da Rosa é o título do seu romance exemplar do ponto de vista do sucesso, de sorte a empolgar ao mesmo tempo o general Golbery do Couto e Silva, atendendo à indicação do suplemento literário do New York Times, que costumava receber pontualmente, e Dom Paulo Evaristo Arns, sábio pastor de almas e leitor infatigável formado pela Universidade Católica de Leuven, na Bélgica.

Na tela, a personagem central do enredo foi interpretada por Sean ­Connery, calvo e de barba branca, despido dos trajes e das atitudes de 007. Não sei se Eco chegou a assistir ao filme, que comoveu as plateias mundo afora. Mas, depois de assisti-lo, perguntei aos meus solertes botões que pensaria a respeito o inventor daquela história, tão bem urdida a ponto de parecer verídica, extraí­da intacta do tempo medieval. •

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A origem do mal’

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