Editorial

A democracia impossível

Quando a ditadura se foi pela porta dos fundos, em 1985, falou-se em redemocratização, como se a democracia estivesse ao alcance da mão

O doutor Ulysses entrevistado na 1ª edição do programa Jogo de Cartas. Raymundo Faoro, o amigo fraterno
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Quando a ditadura se foi pela porta dos fundos, em 1985, falou-se muito em redemocratização, como se a democracia estivesse ao alcance da mão. Sejamos honestos ao menos conosco: no país mais desigual do mundo, onde a casa-grande e a senzala continuam de pé, a democracia não tem as mais pálidas condições de vingar, é pura quimera. Aulas práticas de democracia eu as recebi de duas figuras históricas, diferentes entre si, mas ambas a representarem grandes exemplos para o País.

Aludo ao amigo fraterno Raymundo Faoro, mais importante pensador brasileiro, com sua obra monumental, Os Donos do Poder, secundada por A Pirâmide e o Trapézio, outro trabalho que não esconde o seu viés político. A outra personagem é o doutor Ulysses Guimarães, líder das Diretas Já, a reunir nas ruas e praças multidões a clamar contra a ditadura, e deus ex machina de uma Constituição indiscutivelmente democrática, logo enxovalhada pelas agressões de quantos, embora brasileiros, conspiraram contra o Brasil.

Houve outros democratas, por exemplo, André Franco Montoro, mas foram flores raras, entre as quais não cabe escalar Tancredo Neves, embora morresse em meio ao pranto de milhões. Com esta edição chegamos ao fim de um ano profundamente antidemocrático, dominado pela demência bolsonarista e a distância da democracia expandiu-se gravemente. Janus Bifronte não muda a expressão sombria com a qual encara o passado e com ela, sem retoques, deita seu olhar sobre o presente e o futuro.

Verifico, de todo modo, que estamos próximos de publicar a edição de número 1.200, o que significa por volta de 27 anos de vida, a indicar que a prática do jornalismo honesto ainda é possível, mesmo em clima tão escassamente democrático. A se considerar a gravidade da situação em que precipitamos, trata-se de um motivo de orgulho digno, justo e salutar. Quanto a mim, vale acentuar que lições de democracia já as recebi de pensadores graúdos, mas também dentro da realidade cotidiana de diretores de cinema e escritores.

Falo dos italianos do pós-Guerra, a começar por Vittorio De Sica, vencedor de quatro Oscar e autor de alguns dos melhores filmes de todos os tempos, de Ladrões de Bicicletas a O Jardim dos Finzi-Contini. Cabem nesta especialíssima cátedra Luchino Visconti, Roberto Rossellini, Mario Monicelli, Bernardo Bertolucci, Dino Risi, Ettore Scola. Sem esquecer John Ford, com seus O Homem Que Matou o Facínora e Vinhas da Ira. Aqui convém citar aquele que está por trás da tela, John Steinbeck, na minha opinião o mais importante escritor americano do século XX, superior mesmo a William Faulkner, que veio a São Paulo por ocasião do IV Centenário e, em companhia de Errol Flynn, tomava pileques homéricos em um bar próximo ao Hotel Esplanada, onde ambos se hospedavam.

Me vem à memória um filme de Luciano Salce, criado à sombra do nosso TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, destinado a tornar-se diretor e ator de respeito de volta à Itália. O filme intitula-se Il Federale, do qual tinha o cassete. Acabei por emprestá-lo a Paulo Autran. Interpretado por Ugo Tognazzi, conta a história de um agente fascista incumbido de capturar, em uma aldeia perdida nos Apeninos, aquele que será figura importante quando a Itália conseguirá livrar-se de Mussolini. Ao longo do caminho de volta, o Federale ouve, sem entender o significado, as lições do capturado, mas quando chega em Roma o fascismo já caiu e as tropas americanas invadiram a capital.

Ainda a envergar a farda fascista o Federale é perseguido pelas ruas até que o próprio personagem que ele capturou com estardalhaço o livra do abraço fatal dos perseguidores.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1188 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: OSWALDO JURNO/ESTADÃO CONTEÚDO E ARQUIVO PESSOAL

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