Editorial
A cultura vem da África
Dorival Caymmi foi o guia da minha alma, indispensável para entender o País e as coisas nossas


Menino à beira da adolescência, meu guia Brasil adentro é Dorival Caymmi, e chamo o vento porque é sempre dia de festa no mar. A voz do poderoso barítono baiano me embala, é o canto de um poeta determinado a exaltar meus melhores sentimentos.
Moro em uma rua de terra na esquina de outra nas mesmas condições, atravessada por um córrego, afluente do Rio Pinheiros, superado apenas pelo salto incerto de uma pontezinha de madeira, daí o fato inextinguível de ser obrigado a uma caminhada de mais de 1 quilômetro até o ponto final do bonde chamado a me levar ao colégio.
Nas cercanias estica-se a topografia peculiar do campo do Corinthinha de Pinheiros, time varzeano oportunamente situado em frente a um bar empoeirado, onde à noite se disputa a “morra”, tipicamente italiana, e aos berros alcançam o meu quarto.
Anunciam o número de dedos atirados sobre a mesa em frente ao bar, no mínimo por dois competidores, antecessores do “palitinho”. O campo não se envergonha pelo desnível de vários metros entre os dois gols. No primeiro tempo, o time atacante escala no rumo do gol adversário, com a certeza de que o castigo também cabe aos inimigos no tempo seguinte. Sábado é dia de treino, domingo de refrega para valer.
Munido de fé quântica, chego até aqui empurrado pelo propósito de conformar-me à ideia de que tudo acontece em perfeita contemporaneidade. Volto agora à desventura humana de aceitar a passagem implacável das horas. No meu coração, Caymmi soa mais alto e ninguém haverá de levantar dúvidas a respeito desta minha crença.
Gilberto Gil, no tempo de ministro de Lula, e seus companheiros baianos foram herdeiros naturais de Caymmi – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
Sobrenome tipicamente de Gênova, onde nasci, necessariamente teria de indicar a súbita presença de um marinheiro da minha terra conquistado pelo lugar então perfumado de jasmim e lá decidido a ficar até o fim da vida para criar família. De fato, há toda uma série de Caymmi baianos, aparentados pelo sangue ou pelo talento, inspiradores de uma linha musical que agrega velhos e novos, muito marcantes de um modo de nítida origem africana.
É outra forma de sincretismo a medrar no Brasil, muito representativa do País nas suas entranhas e profundas vocações. Comove-me quanto devo a Caymmi, descendentes e acólitos. Tal é o meu Brasil, inconfundível, único, definitivo. Sobrevêm aí as ciladas do destino, provocadas pelo dinheiro, corruptor, débil moralmente, sem o temor de secundar a sua própria ignorância, voluntariamente cultivada como uma desmesurada plantação de soja, uma das commodities orgulhosamente exportadas.
Quem quiser confrontar o Brasil de Dorival Caymmi na sua acepção mais larga e nas implicações inevitáveis com aquele país atual, exposto e fatalmente inclinado aos sons e aos hábitos nascidos sorrateiramente do agronegócio, efeito de uma campanha capilar a favor da decadência intelectual. Calam-se os seresteiros de antanho, como Silvio Caldas, que já ecoou na Baixa do Sapateiro para cantar a graça das meninas frajolas.
Aflige-nos hoje a gritaria esganiçada dos seresteiros sertanejos, ao toque de cornos e tubas, para as manadas avançarem pelos campos desmatados. Poderíamos acreditar que o Brasil se tornou, por obra de um estranho sortilégio, em novo faroeste. Embora os centros habitados não se chamem Tombstone, temos um povo notoriamente ingênuo, afeito à credulidade mais elementar e quem a explora é um amplo movimento de imbecilização coletiva.
Os autores do engodo vazam o surto irrefreável de alegria provocada pelo êxito do malfeito e o seu sucesso justifica o cumprimento dedicado a si mesmos. Para escapar ao súbito impulso de sair por aí de botas e chapéu de caubói, tomo o rumo do bairro das fontes coloniais para ouvir distintamente os clarins da banda militar ao anunciarem que Dora, rainha do frevo e do maracatu, veio dançar e rebolar. Ninguém dança e rebola tão empolgante nos gestos, venham ver o que é bom.
E de jangada saio para o mar, que sabe ser bonito quando quebra na praia, como já dizia Teócrito, vate grego, mais de dois mil e quinhentos anos atrás. Volta a dúvida: mas o tempo existe? •
Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.
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