Economia
Viés da navalha
O mercado só vê dívida onde há também receita fiscal exuberante


Sob o fogo cruzado do sistema financeiro, que nunca considera suficientes os cortes de gastos, e de amplas parcelas contrárias a reduções de despesas, o governo confirma a possibilidade de se atingir déficit zero neste ano, a um custo considerado relativamente baixo. O resultado, antes descrito por muitos como impossível, parece cada vez mais provável e deixa evidente o efeito fiscal benéfico de uma economia em ascensão, engrenagem que funcionou muito bem nos governos anteriores de Lula.
Notícias sobre a insuficiência do aumento da arrecadação para equilibrar as contas, o crescimento da dívida pública, os limites do arcabouço fiscal, o inédito custo de 1 trilhão de reais da Previdência no Orçamento e propostas de aumento da taxa de juros em dois pontos porcentuais nos próximos seis meses pipocam nos jornais, mas pecam por focar apenas um lado do problema, o da despesa. É preciso não esquecer, contudo, o aspecto das receitas.
Dados do governo revelam um funcionamento considerado “muito bom”, por exemplo, da lei de garantia de crédito, um dos fatores que possibilitou o crescimento excepcional de 17% da concessão de empréstimos, em termos reais, entre julho de 2023 e julho de 2024. A elevação muito acima da projetada pelos analistas do sistema financeiro, acometidos pela síndrome do erro crônico de previsões, é uma das explicações para a alta significativa do PIB. O produto interanual cresceu 3,3%, entre o segundo trimestre de 2023 e o segundo trimestre de 2024, aponta o acompanhamento do governo. E a arrecadação tributária aumentou 13% em termos nominais e 9% reais. Para cada unidade de crescimento do PIB, há três de crescimento da arrecadação. O fato relevante é que o governo, sob ataque especulativo permanente e acusações incessantes de elevação descontrolada dos gastos, aposta na atividade econômica, e quando ela ocorre com bom ritmo de criação de emprego, a arrecadação tributária sobe de forma expressiva. Na quarta-feira 11, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou nova revisão, para cima, da estimativa de expansão da atividade neste ano, de 2,7% para 3% ou mais.
A arrecadação tributária aumentou 9% em termos reais
A dinâmica da relação entre maior dinamismo da economia e ampliação da arrecadação não é estranha àqueles que acompanharam de perto os governos anteriores de Lula, mas, dez anos depois, poucos se lembram de que naquele período o emprego formal foi essencial para a arrecadação do INSS, a contribuição para a seguridade social. O fato, comprovado novamente, é que quando o emprego formal aumenta, mais trabalhadores pagam o imposto direto no holerite. A massa salarial se expande e os tributos arrecadados mediante desconto na folha de pagamento também crescem. O ponto a ser destacado é uma dinâmica econômica subjacente que incrementa o desempenho fiscal.
No terreno prático do Orçamento, a margem de manobra é estreita, pois as despesas obrigatórias, determinadas pela Constituição, por leis aprovadas pelo Congresso ou pelos contratos firmados pelo governo, representam 92% dos gastos primários. Os destaques são os Benefícios da Previdência Social, de 913,7 bilhões de reais, as transferências constitucionais, de 516,5 bilhões, e os gastos com pessoal, de 380,4 bilhões. O governo tem algum espaço de manobra apenas sobre os 8% restantes, nos quais se incluem os investimentos e diversos programas sociais.
Critica-se com frequência o fato de o governo atual, eleito a partir da condenação do teto de gastos, anunciar cortes em despesas sociais para atingir a meta de déficit fiscal zero, mas há diferenças importantes entre as duas situações. A referência atual não é a ideia de cortar irrestritamente. Sob o teto de gastos, previa-se uma redução linear das despesas por 20 anos, com destruição de parte relevante da máquina do Estado. A atual equipe econômica analisa, porém, as políticas que possam eventualmente passar por revisão de gastos por meio de melhora de eficiência. O primeiro exercício deste tipo resultou na possibilidade concreta de uma economia de cerca de 26 bilhões de reais, entre este ano e o próximo, não por meio de cortes, mas da redução de gargalos.
Cascata. Um crescimento maior do PIB e do emprego tem efeitos positivos sobre a arrecadação do INSS, alquebrado no governo Bolsonaro – Imagem: Paulo Pinto/ABR e Klécius Henrique/Previdência Social
Em contrapartida às críticas, condena-se o aumento de gastos de modo geral, sem levar em conta o desmonte da máquina pública empreendido de modo sistemático pela equipe de Jair Bolsonaro. Nada menos que 10% dos postos de trabalho do quadro de funcionários federais foi extinto e o recente concurso público unificado repõe apenas parte da perda, que exigirá anos para alcançar o patamar de 2015. Outro exemplo eloquente é o da fila do INSS. O governo anterior concedia o direito à aposentadoria, mas não fazia o pagamento correspondente. Em outras palavras, segurou as concessões do benefício, em uma estratégia pouco discreta de maquiagem das contas públicas. Esta é uma das razões do enorme crescimento do gasto com o INSS entre 2023 e 2024, quando o governo atual decidiu zerar a fila. O problema é que, a partir do reconhecimento do direito do beneficiário, foi preciso pagar de modo retroativo, tendo como referência o momento em que a aposentadoria foi solicitada, o que deu origem a uma conta elevada com a Previdência.
Outra frente importante de ação referente às receitas fiscais é a tentativa de combater benefícios tributários injustificáveis. Destaca-se neste segmento a redução das perdas de arrecadação com a pretendida perpetuação do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), criado para permitir a sobrevivência desse setor durante a pandemia. Uma lei sancionada por Lula possibilitou reduzir esse gasto tributário a 15 bilhões de reais. O debate com o Congresso sobre as desonerações prossegue, parte do esforço para a recomposição da base de pagamento de tributos, que envolve o enfrentamento de interesses incrustrados no Parlamento.
A perspectiva de nova revisão do PIB para cima anunciada por Haddad tem importância decisiva, sugerem as considerações da economista Julia Braga, atual subsecretária de Acompanhamento Macroeconômico e de Políticas Comerciais do Ministério da Fazenda, em seminário do Ipea e da Universidade Federal do Rio de Janeiro quando do surgimento do novo arcabouço fiscal. Para estabilizar a relação dívida–PIB no longo prazo, sublinhou a economista, o produto interno tem de crescer de modo significativo. O impulso da dívida acaba muito atrelado à taxa Selic, e quando se deflacionam os valores, se vê o quanto a nossa dívida é delicada. Uma situação verificada nas últimas décadas, tanto com indicadores fiscais piores quanto em épocas de situação melhor.
Em termos de custo-benefício, ressalta Braga, se o País não tiver um crescimento perto de 3% ao ano ou um pouco acima, não tem mágica, a dívida pública não vai cair, exatamente pelo fato de a taxa Selic ser muito alta. “Pode-se debater por que é alta, mas já se sabe que historicamente é assim. E na tentativa de fixar uma Selic muito baixa, sabe-se o que aconteceu, foi temporário, teve até uma influência sobre as expectativas de desvalorização cambial e acabou contraproducente. Prestar atenção só na questão fiscal, ou dos indicadores fiscais, sem se preocupar com isso, não melhora o quadro”, argumentou.
O governo dobra a aposta na atividade econômica
Nesse contexto, cortar investimento público é correr o risco de fracasso, tanto do ponto de vista macroeconômico e do desenvolvimento quanto das próprias contas fiscais. “Essa é uma questão de não matar a galinha dos ovos de ouro. É preferível tolerar um pouco de crescimento da dívida pública, desde que a nossa economia esteja dinamizando. É um preço a pagar”, destaca Braga.
Lula tentou melhorar a regra do novo arcabouço fiscal em relação ao espaço para os investimentos públicos, mas acabou derrotado. À época da instituição das atuais regras, o presidente vetou dois trechos da lei sancionada. O primeiro suprimia o dispositivo que determina, no caso de a receita fiscal não comportar o cumprimento das metas de resultado primário, o corte dos investimentos públicos ao nível do limite dos gastos discricionários. O outro determinava que a Lei de Diretrizes Orçamentárias não excluísse quaisquer despesas primárias da apuração da meta de resultado dos orçamentos fiscal e da seguridade social. Uma semana antes, a pesquisa Barômetro do Poder, do site Infomoney, ouviu executivos do setor financeiro que indicaram 69% de probabilidade de anulação na Câmara dos vetos do governo descritos acima, o que acabou ocorrendo.
Em nova tentativa de escapar ao cerco do sistema financeiro ao investimento público, o presidente Lula anunciou recentemente a possibilidade de os fundos de pensão de empresas estatais investirem em obras do PAC, afetadas pelo estrangulamento de recursos imposto pelo dogma do ajuste fiscal. Foi a senha para a mídia reiniciar a campanha de demonização desses fundos de investimento. •
Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Viés da navalha’
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