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Uma mão lava a outra

O TCU e a Justiça Federal questionam a venda da Cedae, mas o caso arrasta-se nos tribunais cariocas

Talvez uma martelada inútil
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Na rumorosa privatização da Cedae, empresa pública de água e saneamento do Rio de Janeiro, alardeada como a maior de todos os tempos no setor de infraestrutura, a venda do Lote 2, para a Iguá Saneamento, por 7,28 bilhões de reais, em leilão realizado em abril, incorreu em vários desvios da lei segundo manifestações do Tribunal de Contas da União e da Justiça Federal do Rio de Janeiro. Caso a Justiça estadual e o Tribunal de Contas local, atuais responsáveis pelo caso, confirmem as conclusões, o leilão tende a ser anulado devido a irregularidades com potencial para beneficiar a empresa privada e seus diretores à custa do Estado. Diante da lentidão do andamento na esfera estadual, o deputado Paulo Ramos, do PDT, decidiu na quarta-feira 1º encaminhar um pedido de apuração no TCE, para identificar eventual omissão ou prevaricação. “O TCU reconhece a ilegalidade e a irregularidade, mas diz que a responsabilidade é do TCE. Vou pedir à Assembleia Legislativa, já que o TCE é seu órgão auxiliar, uma apuração sobre o que houve nesse tribunal, para que ele se omitisse ou prevaricasse”, dispara o deputado, que ingressará também na Justiça estadual.

O TCU e a Justiça se pronunciaram em resposta à ação popular movida por Ramos e pelos sindicatos de trabalhadores, Sindágua, e de engenheiros, Senge. Os autores da ação alegam que o Consórcio Iguá Saneamento, vencedor do Bloco 2, não poderia ter participado do leilão da Cedae porque 13,21% de suas ações pertencem ao BNDESPar, subsidiária do próprio BNDES, banco que desenhou o edital de concessão. “Considerando que o BNDES foi o responsável pela estruturação do projeto de privatização, a aquisição de um dos blocos por sua subsidiária consistiu em vantagem competitiva indevida, visto que, na condição de responsável pela licitação, o banco teria acesso a todas as informações da CEDAE, inclusive as mais reservadas e sigilosas”, argumenta Ramos.

Este parágrafo da decisão tomada em julho pelo TCU, intitulado “Exame Técnico”, deixa claro existirem aspectos problemáticos, do ponto de vista legal, na privatização da Cedae, que desobedeceu ao próprio edital de licitação: “Aparentemente, em exame de cognição superficial, a partir das informações coligidas, a participação da Iguá Saneamento na licitação parece moldar-se ao impedimento previsto no item 13.5 do edital de licitação, considerando que o ­BNDES foi a empresa contratada pelo Estado do Rio de Janeiro, por meio do Contrato 17.2.0389.1, para realizar a estruturação da concessão dos serviços públicos de fornecimento de água e esgotamento sanitário do Estado do Rio de Janeiro e uma subsidiária do BNDES, a ­BNDESPar, é integrante do consórcio que arrematou um dos lotes objeto da licitação. O subitem 13.5 é claro ao estabelecer que a proibição se estende a qualquer pessoa física ou jurídica que tenha qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica ou financeira com os responsáveis pela elaboração dos estudos. Esta é justamente a situação em exame, considerando que a BNDESPar é uma sociedade por ações, constituída como subsidiária integral do BNDES”.

A Iguá, uma das vencedoras, tem o BNDESPar como sócio, o que contraria as regras do leilão

O juiz Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias, da 5ª Vara Federal do Rio de Janeiro, seguiu na mesma direção em manifestação de 15 de setembro: “Apesar de serem pessoas jurídicas de naturezas distintas, o BNDES é uma empresa pública, enquanto o BNDESPar é uma sociedade anônima, não se pode perder de vista que a BNDESPar é uma sociedade por ações, constituída como subsidiária integral do BNDES, o qual, na qualidade de único controlador acionário, detém plenos poderes para decidir sobre todos os negócios relativos ao objeto social da mesma e adotar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e ao seu desenvolvimento. Sob esse prisma, considerando que os recursos da BNDESPar pertencem integralmente à sociedade controladora – o BNDES, a atuação deste no polo passivo da demanda prescinde da participação da subsidiária”.

A existência de condições propícias para o trânsito e o uso indevido de informação privilegiada fica ainda mais nítida diante do fato, omitido até agora pela mídia, de que vários integrantes do conselho de administração e da diretoria da Iguá têm histórico de fortes vínculos com o BNDES, e, nessa condição, com acesso, ao menos em tese, a informações internas do banco no qual atuaram. É importante deixar claro que o histórico de passagem, em posições-chave no banco público, de vários integrantes da cúpula da Ingá não caracteriza, por si, aquela irregularidade, mas as restrições estabelecidas pela lei não se prendem à comprovação ou não do uso de informação privilegiada, como deixa claro Rafael­ Valim, professor de Direito Administrativo e sócio do Warde Advogados. “Em termos objetivos, a legislação não permite a relação entre integrantes do conselho de administração e da diretoria da Iguá com o BNDES.” A restrição, diz ­Valim, “visa evitar informação privilegiada, ainda que isso não se comprove. Os dispositivos legais em relação aos conflitos de interesses sempre têm essa característica de antecipação. Faz-se um juízo negativo sobre a relação de conflitos de interesses e proíbe-se de modo a evitar que ocorra o ilícito. Todas as leis de conflitos de interesses têm justamente esse propósito. Não importa o que ocorreu em determinado caso concreto, o fato é que a legislação proíbe uma relação dessas, aprioristicamente”.

O BNDES nega o conflito apontado pelo TCU

Quatro cargos centrais da Iguá são ocupados por ex-altos funcionários do BNDES, detalha a própria página da empresa na internet, consultada na terça-feira 30:

Felipe Rath Fingerl – diretor-financeiro, de Relações com Investidores e Administrativo da Iguá com mandato de julho deste ano a julho de 2023. A página da Iguá não informa sobre sua passagem no BNDES, mas em apresentação durante a sétima Conferência Internacional Economia Criativa, em dezembro de 2007, Fingerl identificou-se como diretor das áreas de Mercado de Capitais, Tecnologia da Informação e Gestão de Projeto do banco público.

Paulo Todescan Lessa Mattos – presidente, desde 2017, do conselho de administração da Iguá. Foi diretor-superintendente do BNDES e membro do Comitê de Crédito e Investimento e chefe do Comitê Gerencial (2007-2009).

A Justiça Federal dá sinais de que vai reconhecer a existência de conflito de interesses

André Gustavo Salcedo Teixeira Mendes – diretor da Iguá com mandato de 19 de julho deste ano a julho de 2023. Atuou por 16 anos no BNDES, em especial nas áreas de mercado de capitais, tendo participado de diversas operações de investimento, desinvestimento, reestruturações (societárias e financeiras) e em combinação de negócios (M&As) das empresas investidas pela BNDESPar, além de ter sido indicado como representante do BNDES em conselhos de administração e fiscal de algumas dessas empresas.

Maria Silvia Bastos Marques – membro efetivo do conselho de administração da Iguá com mandato de setembro deste ano a abril de 2023. Foi Presidente do ­BNDES entre 2016 e 2017 e ocupou o cargo de diretora-financeira do banco em 1992.

Ary Giota, presidente do Sindágua, cita o alto interesse econômico do Lote 2 da Cedae arrematado pela Iguá. “É o mais lucrativo, abrange uma área que vai da Barra da Tijuca a Jacarepaguá. Do ponto de vista financeiro, tem retorno elevado, sem inadimplência e recebeu grandes investimentos públicos, inclusive na área de esgotamento sanitário. Cerca de 70% da região está com o saneamento pronto. Além disso, a empresa privada está entrando com uma meta de universalização de fácil cumprimento,­ porque o Estado já fez quase tudo.” Segundo Valim, “parece configurar-se conflito de interesses por ter sido o BNDES que estruturou a concessão e porque a empresa vencedora tinha uma participação da BNDESPar. Tanto que o juiz já está sinalizando um eventual posicionamento no sentido de reconhecer isso. Ele evitou conceder uma liminar para paralisar a licitação, mas declarou explicitamente a relevância da questão”.

O deputado Ramos quer saber o motivo da lentidão da Justiça fluminense

Em resposta a esta revista, a Iguá afirmou que o leilão do Bloco 2 da Cedae “ocorreu de forma transparente e isonômica entre todos os concorrentes”, com lisura atestada pela comissão de licitação. Segundo a empresa, é “totalmente descabida qualquer alegação de participação ilegal do BNDES no referido processo, em razão de integrar o quadro societário da Iguá Saneamento S.A., uma vez que a BNDESPar (e não o BNDES em si) detém somente uma pequena participação na companhia, o que sequer confere ao banco estatal ingerência sobre as atividades da concessionária. Fato que inexiste qualquer conflito de interesses”. O edital, segundo a companhia, veda somente a participação que “tenha por escopo a execução de atividades com vistas à participação da licitante na presente licitação” e que a participação do BNDES na empresa remonta ao ano de 2012.

O BNDES informou que “a BNDESPar detém uma participação minoritária e não executiva na Iguá, 10,8%. Por isso, não participa da administração da companhia, nem mesmo integra seu grupo de controle. Além disso, o regulamento interno do Sistema BNDES contém política de barreira de informações. Há segregação entre as unidades que gerem a participação da BNDESPar na empresa e a unidade do BNDES que estruturou o projeto de saneamento do Rio de Janeiro. Por fim, o próprio edital também vedava direta ou indiretamente, isoladamente ou em consórcio, a participação de pessoas físicas e jurídicas que trabalharam na elaboração dos estudos técnicos que subsidiaram a licitação. Nenhum técnico do BNDES que atuou nesta elaboração participa ou participou na gestão da carteira da BNDESPar”.

Um desembargador aposentado, que optou por permanecer anônimo, assim se manifestou sobre a privatização da Cedae: “Essa operação está sendo saudada como o maior projeto de infraestrutura do Brasil e eles vão como um trator, sob a bandeira do vale-tudo”.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1186 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: FERNANDO FRAZÃO/ABR E ALAN SANTOS/PR – TOMAZ SILVA/ABR E MICHEL JESUS/AG.CÂMARA

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