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Um passo de cada vez

O avanço é inegável, mas é longo o caminho para nos libertarmos da armadilha do crescimento medíocre

Haddad obteve vitórias importantes no primeiro ano – Imagem: Diogo Zacarias/MF
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Tentativa de golpe de Estado, ameaça contínua de desestabilização política, destruição da capacidade de ação do Poder Público com privatizações e corte de 10% do funcionalismo federal, pressão ininterrupta do sistema financeiro e de um Banco Central implacável com o investimento e o gasto público, Congresso hostil e voraz por verbas públicas entendidas como de domínio particular… Este é o contexto para lá de complicado encontrado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Em quatro anos, a máquina trituradora do bolsonarismo deixou um quadro caótico na economia, e nas contas públicas, uma cratera de 300 bilhões de reais em gastos na fracassada tentativa de reeleição.

O rombo bilionário foi o ponto de partida da estratégia de reconstrução fiscal e econômica. Na primeira explanação a jornalistas, Haddad disse que concentraria esforços na recomposição do orçamento com a recuperação de receitas, em vez de se dedicar ao aumento da tributação e às tradicionais reduções de gastos, sempre exigidas pela banca. O ministro apontou ainda, como objetivo importante, o aumento da justiça social nessa operação de recomposição e reequilíbrio fiscal.

Entre incontáveis avanços e recuos da reconstrução, inevitáveis em um governo minoritário no Congresso, constata-se, após um ano, uma coerência considerável entre o objetivo definido e o esforço da Fazenda e, provavelmente, esta é uma das principais causas da credibilidade conquistada por Haddad. Em dezembro, o governo cravou para março, com a anuência do chamado mercado, a data de reconhecimento de um eventual estouro da meta de déficit fiscal zero, no caso de não se atingir a necessidade de aumento da arrecadação. Ao término do ano, a previsão zerada não parecia factível para quase ninguém, além de Haddad. O mais importante, contudo, segundo os azougues do mercado financeiro, era o titular da Fazenda reafirmá-la todos os dias, como fez, de modo a alimentar a esperança, vã ou não, de déficit zero. “Não importa se a meta zero será atingida, o importante é o ministro reiterar a intenção de atingi-la”, tonitruou a voz do mercado na mídia. Em outras palavras, o fundamental, nesse jogo, não são desfechos específicos, como o da batalha entre déficit zero e déficit de 1%, mas o objetivo estratégico da banca, de não perder poder sobre o Estado.

A expansão prevista para 2024 será muito parecida com aquela dos anos 1990, “década perdida”

O aumento da previsibilidade mesmo em condições adversas, apoiada no sistema de pesos e contrapesos do novo arcabouço fiscal, ajuda a entender por que a consolidação da institucionalidade, tanto a da democracia quanto a do mercado, inimiga estratégica do bolsonarismo, é uma das  maiores conquistas deste ano e explica a reanimação dos agentes econômicos que veem no retorno do funcionamento normal dos poderes constituídos perspectivas de maior segurança para suas projeções e seus investimentos. Em um ano, a reconstrução da institucionalidade recolocou o Brasil diante de si próprio e na sua relação com o mundo. O desemprego no trimestre encerrado em outubro atingiu 7,6%, a menor taxa desde fevereiro de 2015, e deverá fechar o ano com média de 8%. O PIB aumentou 2,9%, enquanto a inflação deverá diminuir para 4,2%, abaixo dos 5,6% de 2022. A Bolsa de Valores atingiu recordes de alta e o dólar, de baixa. A aprovação da reforma tributária, que rendeu melhora do País na classificação de risco da S&P, e da taxação de fundos exclusivos e ­o­ffshore, o início da redução dos juros e outras conquistas fazem parte da longa lista de compromissos assumidos e cumpridos.

O próximo ano acena, no entanto, com uma escalada da crise climática, incompatível com a exuberância da agropecuária, que garantiu grande parte do crescimento de 2023, ao lado da injeção inicial de recursos da PEC da Transição, leia-se Bolsa Família turbinado, aumento para o funcionalismo, dotações a todos os ministérios e outros desdobramentos. O crescimento em 2024, ainda em ambiente de juros exorbitantes, dependerá, em muito, do êxito do PAC, reconhecidamente subdimensionado, do andamento da promessa de “neoindustrialização” e da melhora do ambiente econômico internacional, em consequência do arrefecimento das tensões monetárias nos Estados Unidos e da dinâmica da economia chinesa.

Na comparação com o descaminho no governo anterior, a mudança de rumo para melhor é tão nítida que existe o perigo de não se perceber que uma elevação substancial do patamar de gastos e investimentos, públicos e privados, provavelmente será imprescindível para manter e consolidar o avanço alcançado. Este parece ser o sentido do discurso de Lula aos integrantes do Conselhão: “Nós temos o caminho das pedras, temos que decidir agora se vamos retirar essas pedras ou chegar à conclusão de que, por um problema da Lei de Responsabilidade Fiscal, de superávit primário, de inflação, a gente não pode fazer. E vamos todos desanimar, voltar para a nossa vidinha, que é a de um ano ganha, um ano perde. A massa salarial de hoje é menor que a de 2010”.

No complexo da saúde, uma chance de reindustrialização. O novo PAC é uma tentativa de dar coerência ao investimento público – Imagem: Peter Ilicciev/Fiocruz e Mayke Toscano/GOVMT

Com a autoridade moral de quem manteve crescimento econômico e superávit fiscal nos seus dois mandatos anteriores, Lula destacou, no Conselhão, um enorme problema. “As previsões apontam um crescimento de 1,5% em 2024, talvez um pouco mais, devido a ser um ano eleitoral, se a conjuntura internacional melhorar, em especial com a resolução dos conflitos no Oriente Médio e na Ucrânia. Mas será muito parecido com o que tivemos nos anos 1990, na chamada “década perdida”, um crescimento entre 1,5% e 3% no máximo, muito aquém do que o País precisa”, afirma o economista Rodrigo Sabbatini, professor e diretor da Facamp. O Brasil, enfatiza Sabbatini, não está em condições de sustentar um crescimento mais robusto em 2024 porque faltam os instrumentos para motivar o espírito keynesiano. Para ter uma expansão maior, prossegue, é necessário mesclar um excelente desempenho do setor privado, seja consumindo, seja investindo, em especial em formação bruta de capital fixo, isto é, investimentos que agregam capacidade produtiva e criam emprego e renda, com uma vigorosa sustentação do emprego e do gasto público, que contribua para o aumento do investimento, sobretudo em infraestrutura e construção, setores que geram muito emprego, muito aumento da capacidade produtiva e, portanto, no futuro, diminuem a pressão inflacionária.

Em resumo, não há como dar um salto de desenvolvimento se for mantido um crescimento de até 3% ao ano. Um país em desenvolvimento como o Brasil, estima o economista, precisa crescer de 5% a 7% durante quatro a cinco anos seguidos para mudar o patamar econômico, no sentido de aumentar a renda de maneira mais bem distribuída e sustentável e galgar a escada da prosperidade. “Isso, infelizmente, não vejo possibilidade de se concretizar no curto prazo. É preciso dar esse drive, esse empuxo, para que os chamados ‘espíritos animais’ do investimento privado, principalmente, sejam aguçados de maneira mais clara.”

Todos os países que deram um salto no crescimento e mudaram de patamar, inclusive o Brasil, entre o fim dos anos 1930 e o fim dos anos 1970, cresceram em torno de 8% ao ano. O sucesso mais recente é a China, que, entre 1980 e 2010, se expandiu entre 9% e 10% ao ano. É o caso também de todos os países da Europa Ocidental da metade do século passado, como a Itália, nação relativamente pobre que em um período de 20 a 30 anos depois da Segunda Guerra Mundial tornou-se desenvolvida, por ter sustentado um crescimento econômico elevado com distribuição de renda por muito tempo. Em todos esses exemplos, o investimento público sempre esteve à frente do esforço geral. Quando há crescimento acelerado, o investimento representa ao menos 25% do PIB, com uma parcela significativa, nos primeiros anos, de dinheiro público, que nos últimos dez anos, no Brasil, permaneceu estacionado em um patamar muito abaixo do necessário. Segundo o IBGE, a taxa no terceiro trimestre foi de apenas 16,6% do PIB, inferior aos 18,3% do trimestre anterior e a menor desde 2020.

Sem recursos públicos para investimento, financiamento e coordenação do investimento privado, resta o ramerrame

A perspectiva hoje é melhor do que há cinco anos, sublinha Sabbatini. O professor destaca a importância da retomada do PAC, ainda que em condições limitadas, e do programa de apoio e mobilização do complexo econômico e industrial da saúde, capaz de gerar muitos empregos com rapidez, e desenvolvimento tecnológico e produz um efeito multiplicador na economia, além de melhorar a saúde da população. Projetos semelhantes nas áreas de habitação e transporte têm o duplo efeito de mobilizar a atividade econômica e gerar mais crescimento associado à dinamização social e política. “Para tanto, é necessário mobilizar recursos públicos para investimento, financiamento e coordenação dos gastos privados. Senão, fica nesse ramerrame, de crescimento de 1,5% a 3%, no máximo. É isso o que o consumo permite, com esse nível de emprego e renda que temos, e o setor externo que, mesmo bem-sucedido, não é um grande gerador de postos de trabalho”, acrescenta Sabbatini.

O fato de o Congresso controlar grande parte do orçamento, sublinha o economista, inviabiliza políticas de vulto, sobretudo aquelas direcionadas ao aumento dos investimentos públicos, principalmente de infraestrutura, que, ao contrário da ladainha do senso comum, estimula o orçamento privado. O que dá confiança para o investimento privado é, em grande medida, o investimento público, não o controle das contas, no sentido de que o investidor só ganha confiança se o Estado não estiver gastando. “Isso é uma bobagem. A formação bruta de capital fixo acontece seguindo o investimento público. Em qualquer lugar do mundo é assim. Não se quer dizer que o governo tem de ser perdulário. É preciso existir controle dos gastos públicos. Ter aumento do investimento público é, contudo, algo crucial para romper com a inércia de um crescimento meia-boca”, conclui. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

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