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Turbulência passageira?

Após os desastres com o Boeing 737 Max, a fabricante de aviões tenta restaurar sua reputação e suas finanças

Turbulência passageira?
Turbulência passageira?
Suspeição. A fábrica em Everett, na grande Seattle, retomou a produção da aeronave sob uma regulação mais rigorosa das autoridades dos EUA - Imagem: Boeing
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Em um imenso galpão perto de Seattle, a Boeing está acelerando a produção de seu avião mais vendido, o 737 Max. Filas de carrinhos marcados com nomes de equipes como “Mario Bros” e “Wildcat” esperam que os técnicos completem uma dança diária de ferramentas e peças. Acertar a coreografia vale a pena: as paradas da produção na fábrica de Renton podem influir nos números do PIB dos EUA.

Nunca o valor de uma operação lenta ficou mais claro para a fábrica de jatos do que nos últimos três anos. As linhas de montagem foram interrompidas durante mais de um ano após dois acidentes fatais do 737 Max. Entre 2018 e 2019, 346 pessoas morreram quando falhas de hardware e software fizeram que os aviões ignorassem seus comandantes e despencassem do céu. A Boeing pretende mostrar que está pronta para seguir em frente após o desastre do Max, enquanto luta com a crise da Covid-19 e tenta entender o futuro incerto da tecnologia aeronáutica.

Este mês, na primeira visita de jornalistas às fábricas da Boeing em Seattle desde os acidentes com o Max, os executivos procuraram mostrar uma empresa novamente pronta para a recuperação e o crescimento. Greg Hyslop, diretor de projeto da Boeing, diz haver “razões para otimismo” sobre as capacidades tecnológicas da fábrica de jatos. A confiança vem de cima. Dave Calhoun, promovido a executivo-chefe no início de 2020 após a má gestão do escândalo do Max por seu antecessor, disse na semana anterior que a demanda por aviões é a mais robusta que já viu. Ele já havia descrito 2022 como um “ano de virada”, embora alertando que os problemas na cadeia de suprimentos poderão durar até o final de 2023.

A empresa luta para retomar o domínio do setor, perdido para a francesa Airbus

Pelo menos na frente financeira, esse ponto de virada parece iminente. O fluxo de caixa deve se tornar positivo no segundo semestre do ano, segundo analistas de bancos de investimento, encerrando uma série de perdas lastimáveis, com uma queima de caixa acumulada de 34 bilhões de dólares (cerca de 177 bilhões de reais) desde que o Max foi suspenso. A maioria desses analistas acredita que a Boeing poderá se tornar lucrativa e aumentar o preço de suas ações nos próximos anos.

No entanto, a Airbus, com a qual a Boeing compartilha amarga rivalidade, avança como a maior fabricante de aviões do mundo. As entregas anuais da ­Airbus ultrapassaram pela primeira vez as da Boeing em 2003, mas a concorrência foi acirrada até 2019 após o aterramento do Max. Agora, a Boeing está muito atrás, com 340 entregas contra 611 da Airbus em 2021. A Airbus se prepara para construir 70 aeronaves por mês da família A320, em comparação com 31 mensais do 737 Max.

Ao som da rebitagem, Dennis Eng, ­diretor de operações comerciais em ­Renton, disse que a fábrica atingirá essa meta “até o final do ano”. “Avaliamos nossa capacidade de aumentar a taxa conti­nuamente”, acrescentou, mas por enquanto o foco é a “estabilidade” da produção.

Outro problema potencial que paira sobre o programa da Boeing é a recertificação das variantes 737 Max 7, mais curta, e 737 Max 10, mais longa. A Boeing corre para concluir o processo antes do final do ano, mas se perder esse prazo será forçada a desenvolver uma nova cabine de comando, conforme as regras impostas pelo Congresso dos EUA após os acidentes do Max.

A Boeing contratou “centenas” de engenheiros extras para trabalharem na certificação, diante de um nível de escrutínio sem precedentes da Agência Federal de Aviação (FAA), comenta Mike Fleming, vice-presidente sênior da Boeing responsável pelo retorno do Max. A própria credibilidade da FAA também foi profundamente prejudicada pelos desastres do Max e pelas acusações de que havia sido enganada pela Boeing. Em um e-mail interno, um engenheiro da Boeing se gabou de usar “truques mentais de Jedi” para fazer o software potencialmente perigoso do Max passar pelos reguladores.

Tragédia. Há quatro anos, um Boeing 737 Max despencou na costa indonésia e matou 189 passageiros e tripulantes – Imagem: Ekos S. Toyudho/Anadolu Agency/AFP

Fleming reconheceu que os reguladores determinarão se a Boeing atingirá o prazo do fim do ano, e que a regulamentação em geral é mais rigorosa. “Trabalhamos para certificar o avião segundo os regulamentos em vigor”, disse ele. “Nenhum dos lados vai tentar apressar nada.”

Não é apenas o Max que apresenta desafios à Boeing. O 787 Dreamliner da empresa era feito de compósito de carbono em vez de metal, mas não fez jus ao nome: as entregas ficaram paralisadas durante mais de um ano depois que ele sofreu problemas de controle de qualidade em outra instalação em Charleston, na ­Carolina do Sul. O banco de investimentos Jefferies reduziu suas previsões de entregas do 787 este ano de 45 para apenas 12, o que significa milhões de dólares em lucros perdidos.

Na fábrica em Everett, ao norte de ­Seattle, que perdeu a produção do 787 para Charleston, fica um símbolo de uma era diferente e mais gloriosa. A produção será interrompida até o fim do ano, após 1.574 entregas do avião – “a Rainha dos Céus” – que se tornou o símbolo da era do jato. Ainda não há planos para o espaço da fábrica em Everett. Em breve, poderá se tornar o “maior armário vazio do mundo”, comenta um especialista.

Da mesma forma, não está claro que direção a própria empresa tomará. A decisão de Calhoun de transferir a sede da Boeing de Chicago para Arlington, na Virgínia, mais perto dos funcionários de compras do Pentágono, sugere que seus negócios de defesa – onde receitas mais previsíveis resistiram à pandemia – podem estar em ascensão.

Isso marcará o fim de um período neste milênio durante o qual a Boeing se afastou de suas raízes históricas em Seattle. O jornalista Peter Robison, em Flying Blind (“Voo Cego”), um livro recente sobre o desastre do 737 Max, caracterizou o período de Chicago pelo foco no corte de custos e 30 bilhões de dólares em recompras de ações nos moldes de ­Jack Welch, a celebridade corporativa que liderou a General Electric. Calhoun foi funcionário e parceiro de golfe de Welch.

Em 2018 e 2019, falhas de hardware e software causaram dois graves acidentes, com 346 mortos

Alguns analistas questionam se a fábrica de aviões retornará ao domínio aeroespacial. As perspectivas de longo prazo da Boeing dependerão de modelos futuros, mas ela vacila. Abandonou o projeto de um “novo avião de médio porte” (NMA), uma aeronave de corredor duplo que ficaria entre o 737 Max e o 787, maior, e não está claro o próximo passo. Talvez a principal questão que paira sobre os planos da Boeing seja como ela lidará com um mundo de zero emissões líquidas de carbono. Mesmo que muitos na indústria estejam céticos sobre o alcance de seu compromisso, a Airbus anunciou vários projetos de pesquisa que avaliam combustíveis alternativos, incluindo híbridos elétricos/a gás e hidrogênio, para serem usados em turbinas a gás ou em células de combustível.

A Boeing também realizou testes para armazenar hidrogênio com segurança em voo, e tem participação em uma startup de veículo elétrico de decolagem e aterrissagem vertical (eVTOL), mas também está apostando em “combustível de aviação sustentável”, ou SAF na sigla em inglês. Quimicamente quase idêntico ao querosene padrão usado em aviões, o SAF vem de fontes não petrolíferas, como plantas, ou de processos químicos que usam eletricidade.

Ao mesmo tempo, a Boeing deve ­disputar funcionários com empresas de tecnologia de software (incluindo as antigas startups da área de Seattle, Amazon e Microsoft). Tendo abandonado o projeto NMA, a Boeing passou quase duas décadas sem construir um avião que não fosse uma atualização de um modelo anterior. Hyslop se irrita com a sugestão de que a empresa talvez não consiga criar aviões inovadores no espírito das gerações anteriores. “Se você analisar uma asa do 777X, verá como é inovadora.”

Além de pagar a dívida líquida de 45 bilhões de dólares que acumulou durante a crise e dar a si mesma uma reserva de caixa, a Boeing pode precisar de 75 bilhões, avalia Cunningham. A Boeing fez o possível para evitar aumentar o investimento em ações, o que prejudicaria os acionistas existentes, mas o analista argumentou que novos líderes com visão de longo prazo poderão colocar a empresa no caminho certo. “Ou você se compromete totalmente ou acaba falindo.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Turbulência passageira?”

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