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Tiros no escuro

O governo e o Congresso discutem novas regras para regular as bets, mas, em geral, erram o alvo

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Imagem: Joédson Alves/Agência Brasil e Washington Costa/Ministério da Fazenda
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O Ministério da Fazenda divulgou, na terça-feira 1º, a relação das casas de apostas esportivas que solicitaram permissão para atuar no País. Elas estão autorizadas a funcionar até o fim do ano, quando o governo pretende concluir a análise dos pedidos para filtrar aqueles que cumprem todos os requisitos previstos da Lei nº 14.790/2023, conhecida como “Lei das Bets”. Todas as plataformas que não entraram com pedido de regularização agora são consideradas ilegais, e devem ter acesso bloqueado pela Anatel a partir de 11 de outubro. O prazo de dez dias foi concedido para os apostadores resgatarem os saldos nos ­sites clandestinos. Após o bloqueio, não será possível solicitar o reembolso.

“Do mesmo jeito que o X saiu do ar, essas empresas devem sair também, por falta de adequação à legislação aprovada pelo Congresso Nacional. Se você tem dinheiro em casa de aposta, peça a restituição já”, alertou o ministro Fernando Haddad na segunda-feira 30. Ele estima que entre 500 e 600 plataformas terão o acesso bloqueado no País. As empresas aprovadas terão de pagar uma outorga de 30 milhões de reais. Com isso, o governo prevê arrecadar 3,4 bilhões de reais até o fim do ano.

Além da suspensão das plataformas ilegais, o governo proibiu o uso de cartão de crédito para apostas online a partir de janeiro de 2025. Pela Lei das Bets, as plataformas são obrigadas a adotar medidas de combate à lavagem de dinheiro, como a identificação dos apostadores por meio de documentos oficiais e sistema de reconhecimento facial com prova de vida. No início de agosto, a Fazenda também editou uma portaria com regras para promover o “jogo responsável”, entre elas a emissão de sinais de alerta para informar o apostador sobre os riscos de dependência, a proibição de recompensas para atrair clientes e o veto a jogadores com diagnóstico comprovado por laudo médico de ludopatia (vício em jogos) ou que estejam impedidos de apostar por decisão administrativa ou judicial.

Pura perfumaria, admitem integrantes do próprio governo, preocupados com os desastrosos efeitos da “epidemia das bets”, sobretudo após um relatório do Banco Central revelar que, em agosto, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família enviaram 3 bilhões de reais para as bets pela plataforma Pix, com uma mediana de gastos de 100 reais. Sete em cada dez apostadores são chefes de família, quem de fato recebe o benefício.

Garoto-propaganda. O cantor Gusttavo Lima é suspeito de ser sócio de uma bet investigada por lavagem de dinheiro e jogos ilegais – Imagem: Redes Sociais/Gusttavo Lima

Lula está preocupado com a situação e cogita proibir o uso do cartão do Bolsa Família para apostas, comentou Haddad na terça-feira 1º. Da mesma forma, avalia limitar as transferências via Pix para bets e cassinos online. O presidente deve reunir-se com os titulares dos ministérios da Fazenda, do Desenvolvimento Social, da Saúde e do Esporte, para discutir o tema na quinta-feira 3, após o fechamento desta edição de CartaCapital. Na mesa também figuram propostas para antecipar a proibição ao uso de cartão de crédito e fixar limites mais rígidos para a publicidade das casas de apostas, onipresentes na tevê, nas mídias digitais e nos eventos esportivos. Recentemente, descobriu-se que vários garotos-propaganda tinham, na realidade, participação nos negócios, nem sempre lícitos. A exemplo da influenciadora Deolane Bezerra, o cantor sertanejo Gusttavo Lima foi indiciado pela Polícia Civil de Pernambuco por envolvimento em um esquema de lavagem de dinheiro e jogos ilegais promovido por uma bet.

Com base no relatório do BC, o deputado bolsonarista Fernando Máximo, do União Brasil, apresentou um Projeto de Lei para proibir apostas em bets e cassinos online, mas somente para os brasileiros incluídos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, o ­CadÚnico, sob pena de suspensão temporária do benefício. Já o colega Capitão Augusto, do PL paulista, apresentou uma proposta ainda mais draconiana: prevê a exclusão do beneficiário do Bolsa Família por cinco anos, “caso seja comprovada sua participação em jogos de apostas”. Se o indivíduo não morrer de fome e reincidir na jogatina após ser reintegrado ao programa, aí não tem perdão… O degenerado será excluído para sempre do CadÚnico.

Rugem como tigrões para os ­beneficiários dos programas sociais, mas se portam como tigrinhos diante das bets, observa o deputado petista Reginaldo Lopes. Ele também é autor de um Projeto de Lei que pretende impedir apostas de pessoas cadastradas no CadÚnico, mediante o bloqueio dos CPFs nas casas de apostas, mas a punição recairia sobre as empresas que aceitassem apostas desse público. “É inaceitável que um programa destinado a alimentar as pessoas tenha recursos desviados para a jogatina, beneficiando empresas sediadas em paraísos fiscais, mas não faz sentido cassar o benefício do cidadão. As bets que devem ser multadas por explorar a população em situação de vulnerabilidade social”, resume o parlamentar, que também propõe limitar as apostas a 1% da renda mensal do jogador. Caberia ao Ministério da Fazenda cruzar dados dos apostadores em bancos e na Receita Federal para definir a cota a que cada cidadão teria direito.

“Lamento que esse episódio esteja servindo para estigmatizar, mais uma vez, a população que recebe o Bolsa Família. Não é constrangendo essas pessoas que vamos enfrentar um problema que ameaça todas as ­pessoas e toda a economia”, avalia a deputada Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT. Ela reconhece que o governo e o Congresso subestimaram os impactos das bets, ao aprovar a regulamentação da atividade no fim do ano passado. “Embora a lei estabeleça restrições para a publicidade das casas de apostas, entendemos que ela deve, simplesmente, ser proibida, assim como as ações de marketing. É a única forma de inibir a ação devastadora dessa atividade”, diz a parlamentar. “Defendo, além da proibição, que os sites legalizados de apostas devam trazer advertências de antipropaganda, informando que apostas induzem ao vício, corroem o orçamento e destroem famílias. Da mesma forma que os maços de cigarro advertem que o fumo mata, com aquelas fotos chocantes.”

Em vez de punir as bets que exploram pessoas em situação de vulnerabilidade, bolsonaristas querem cassar os benefícios sociais de apostadores

As bets foram liberadas por Michel ­Temer, mas deveriam ter sido regulamentadas durante a gestão de Jair ­Bolsonaro, que simplesmente deixou a jogatina correr solta, sem regras nem contrapartidas à sociedade. Seduzido com a possibilidade de incrementar a arrecadação com até 10 bilhões de reais por ano, o governo Lula apressou-se a apresentar uma proposta de regulamentação, mas realmente parece ter subestimado a força da epidemia que se alastrava por todo o País. Somente nos seis primeiros meses do ano, 25 milhões de brasileiros passaram a fazer apostas esportivas em sites e apps especializados, revela recente pesquisa do Instituto Locomotiva, com 2.060 entrevistados. Ao todo, são 52 milhões de apostadores, um quarto da população nacional. Destes, 79% pertencem às classes C, D e E, 45% sofreram prejuízos financeiros, 86% possuem dívidas e 64% estão com o nome sujo nos serviços de proteção ao crédito.

A indústria de apostas esportivas movimentou, em 2023, entre 60 bilhões e 100 bilhões de reais, segundo a Strategy&, consultoria estratégica da PwC Brasil. De forma mais precisa, o Banco Itaú estimou em 68,2 bilhões de reais o volume de apostas nos 12 meses encerrados em junho de 2024. O valor corresponde a 0,62% do PIB, 0,95% do consumo total e 22% da massa salarial, acrescenta a Confederação Nacional do Comércio (CNC), a alertar que o elevado comprometimento da renda das famílias com apostas tem potencial de reduzir em até 11,2% a atividade varejista, diminuindo em 117 bilhões o faturamento do setor por ano.

A entidade ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a proibição das apostas online em todo o ­País. Após receber outro pleito semelhante do Partido Solidariedade, o ministro Luiz Fux, relator da matéria, convocou uma audiência pública para debater o tema. A CNC, convém lembrar, é contra as bets, mas defende a legalização dos cassinos reais, com estrutura física. Segundo a entidade, eles têm potencial de gerar 1 milhão de empregos diretos e indiretos, além de fomentar o turismo em regiões pouco desenvolvidas. Sem regras rígidas, há o risco de trocar seis por meio dúzia, avalia o deputado Reginaldo Lopes. “Se não limitar o valor das apostas, proibir o uso de cartões de crédito e adotar outras medidas de prevenção, as pessoas continuarão se endividando e adoecendo.” •

Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tiros no escuro’

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