Economia
Tijolo a tijolo
A principal missão é a reconstrução do Estado brasileiro, sublinha a ministra Esther Dweck


O governo federal perdeu 73 mil servidores entre 2017 e 2022, o equivalente a mais de 10% da força de trabalho, e esta é uma medida do enorme trabalho de reconstrução a ser enfrentado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Estão previstos concursos públicos para 8,7 mil vagas neste ano e a mesma quantidade em outros processos seletivos até 2026. Em março, Lula concedeu aumento de 9% aos funcionários, o primeiro desde 2016. Em entrevista a CartaCapital, a ministra Esther Dweck, professora licenciada da UFRJ que chefiou a assessoria econômica do Ministério do Planejamento e foi secretária de Orçamento Federal, define como principal missão da pasta a reconstrução do Estado brasileiro, com o fortalecimento dos seus instrumentos para melhorar a capacidade de fazer políticas e realizar entregas ao cidadão.
CartaCapital: Qual é a importância do trabalho do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos diante da dilapidação do Estado desde 2017?
Esther Dweck: A principal missão do ministério é a reconstrução do Estado brasileiro e do governo. Encontramos um desmonte claro, no nível orçamentário e de pessoal, grande parte em consequência do teto de gastos. De modo geral, os concursos abertos nos últimos anos ficaram muito aquém das necessidades, tanto no que se refere a quantidade de efetivos necessários quanto em relação ao grau, pois se concentraram no nível médio. Havia o assédio institucional, que praticamente impossibilitava os trabalhadores de fazerem o seu trabalho, criando regras que impediam a atuação profissional. O quadro de funcionários do Ibama, por exemplo, foi reduzido drasticamente e esta é uma das áreas que a gente está recompondo. Estamos trabalhando também na discussão do assédio, tanto moral quanto institucional, para melhorar o ambiente de trabalho. As universidades estavam num processo de expansão que foi interrompido, já no final do governo Dilma, mas, principalmente, com Temer e Bolsonaro. Não havia trabalhadores suficientes e não se fez contratação de professores nem de técnicos administrativos, o que gerou gargalos muito fortes. As universidades estavam muito fragilizadas, inclusive porque a Reforma da Previdência de 2019 acelerou o processo de aposentadoria e a reposição não estava ocorrendo no mesmo ritmo. Realmente, havia uma situação muito triste, de desmonte. Um cenário de terra arrasada. O problema repetia-se no FNDE, no Inep, no próprio MEC, tanto que um dos concursos recentes ocorreu justamente para o ministério poder se reestruturar. Assim como fizemos na área da saúde, com o concurso para a Fiocruz.
Entre 2017 e 2022, o governo perdeu 73 mil servidores, mais de 10% da força de trabalho
CC: Quais são as ações mais importantes nas áreas de pessoal e de processos?
ED: Na área de pessoal, estamos concentrados em identificar a quantidade de pessoas necessárias em cada área e em garantir contratações de funcionários que permanecerão por muito tempo, por serem necessários no futuro. A outra parte é a formação dos servidores, que precisa ser contínua, porque as demandas vão mudando. Utilizamos fortemente a Escola Nacional de Administração Pública, a Enap, para contratação, formação continuada e melhora da capacidade técnica dos servidores. Na área de processos, que visa gerar a capacidade de integração por parte do Estado e inclui a estratégia de compras públicas e a transformação digital, há várias iniciativas. A Secretaria de Gestão vai aos ministérios para pensar novas formas de fazer. Um trabalho importante é o aprimoramento do programa de gestão por desempenho, que significa pensar como cada servidor trabalha para contribuir com aquilo que a unidade dele tem de entregar para se atingir um determinado fim que é pensado de forma pactuada. Hoje há uma carência muito grande na área de suporte, de gestão de pessoas, de TI, de contratações, e a nossa secretaria, que atende cinco ministérios, no próximo ano atenderá 13, e será uma área de unificação de contratações e processos, para ganhar escala. Estamos muito voltados para isso.
CC: E na área de patrimônio?
ED: Entre outros aspectos, nós nos dedicamos a repensar o papel das estatais brasileiras, no sentido de voltar a fortalecer algumas delas. Um exemplo é a Dataprev, que está sob a minha supervisão diretamente. Temos feito um trabalho, com a Dataprev e o Serpro, de ir aos órgãos oferecer a infraestrutura dessas empresas, para dar uma sustentação melhor ao processo de transformação digital dos órgãos. Outra iniciativa é o processo de democratização dos imóveis da União, um pedido do presidente para que a gente pense sobre como usar imóveis abandonados ou vazios para permitir destinações às áreas de habitação, saúde e educação.
Direção. A ministra espera contribuir para o desenvolvimento sustentável do País – Imagem: Adalberto Marques/MGI
CC: O que o ministério tem feito na área de compras públicas?
ED: Há no momento um processo de reestruturação dos instrumentos para fazermos compras governamentais com conteúdo local e sustentáveis. Estamos discutindo, no âmbito da Comissão Interministerial do PAC, como usar esse programa também como instrumento de regras de conteúdo local, onde há maior conteúdo produtivo, tecnológico e industrial. A nova lei de licitações permite ter uma área de preferências e passamos por um processo de regulamentação para transformar isso em política pública.
CC: Como estão as definições sobre compras governamentais nas negociações do acordo entre o Mercosul e a União Europeia?
ED: Um ponto que considero central são os acordos de compras públicas, com importância reconhecida inclusive pelo presidente Lula, nas referências que faz às retomadas do setor naval e da Petrobras. Eu estava no governo, em 2013, quando o Brasil assinou pela primeira vez a possibilidade de um acordo de compras com a União Europeia. Quando se faz um acordo desses, entra-se em uma área diferente, que é de um instrumento de política pública para além da política comercial, tarifária. Neste caso, como o nosso ministério tem como prerrogativa, dentro da Secretaria de Gestão e Inovação, a área de normatização de compras, qualquer acordo em relação às compras públicas passa, por definição, por uma avaliação nossa. A oferta que tinha sido discutida em 2019 sobre o acordo UE–Mercosul era, entretanto, muito diferente da de 2013, que tinha muito mais salvaguardas e proteção desses instrumentos do Brasil. Começamos a discutir internamente uma nova posição do governo que iniciava e o próprio presidente, desde o início, estava muito imbuído disso, e preocupado também. Em parceria com outros ministérios, foi se formando uma nova posição para poder permitir a utilização desses instrumentos de compra mesmo passando pelo acordo UE–Mercosul no âmbito europeu. Vários instrumentos relevantes estavam sendo perdidos na relação com a União Europeia, a partir do que tinha sido proposto em 2019.
Função social. A pedido de Lula, a pasta passou a destinar imóveis ociosos da União para o programa Minha Casa, Minha Vida – Imagem: Mateus Pereira/GOVBA
CC: Há um exemplo concreto de mudança?
ED: A nova lei de licitações já tem uma redução em relação à antiga 8666, na margem de preferência (N.R.: Margem de preferência é o diferencial de preços, admitido nas compras públicas, entre os produtos manufaturados nacionais e importados, e deve ser suficiente para equiparar assimetrias competitivas entre a melhor oferta estrangeira e a melhor oferta nacional), de 25% para 20%, no caso de contratação de empresas inovadoras. E 10% de modo geral. No acordo UE–Mercosul, era 10% só para micro e pequena empresa, não tinha nenhum outro tipo de possibilidade de utilizar margem de preferência. Conseguimos formar uma posição de governo para reverter várias das propostas anteriores e levar uma nova formulação ao Mercosul, para ser encaminhada à União Europeia. Na nossa oferta, estamos excluindo, no sentido de proteger, compras verdes do acordo, para fortalecer a produção no Brasil e as compras a serem feitas no nosso país.
“Ao menos 30% de qualquer aquisição de alimentos pelo governo deve vir da agricultura familiar”
CC: Como adaptar as compras públicas à meta de descarbonização?
ED: Estamos contratando um estudo sobre compras públicas em geral, mas com foco também em compras sustentáveis, com o Instituto da Inovação e Propósito Público da University College London, liderado pela economista Mariana Mazzucato. Queremos fortalecer a nossa capacidade de pensar sobre o assunto e normatizar isso de forma mais segura para as empresas brasileiras, mas como instrumento de indução de desenvolvimento produtivo, com conteúdo local, e ainda como instrumento de transição para um mundo mais sustentável. Destaco também o uso de uma nova modalidade, a de licitação competitiva, muito importante nas compras para inovação, e ainda outra forma relevante, de incentivo ao produtor local, que é a compra de alimentos, em uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, para que 30% de qualquer aquisição de alimentos do governo seja da agricultura familiar.
CC: Como o ministério vem lidando com o problema dos preconceitos e das discriminações?
ED: Estamos fazendo uma análise da lei de cotas para concursos públicos e, recentemente, emitimos uma instrução normativa para melhorar a sua aplicação inclusive nos concursos deste ano. Considero relevante o trabalho de inclusão social dentro da administração pública porque isso tem potencial de mudar a forma de pensar a política, por fortalecer agendas que muitas vezes são negligenciadas quando não há atores relevantes participando do processo de formulação de políticas.
Exemplo. Acordo com instituto britânico chefiado por Mariana Mazzucato visa estimular as compras sustentáveis – Imagem: Adalberto Marques/MGI
CC: Qual é a sua expectativa?
ED: Esperamos contribuir para fortalecer o Estado brasileiro em uma direção mais democrática, cidadã, voltada para um projeto de desenvolvimento inclusivo e ambientalmente sustentável. Estamos muito focados em repensar a administração pública nesse sentido e isso faz parte da própria formação dos servidores. Queremos reforçar o ethos público, o que é ser um servidor público e enfatizar, na contratação das pessoas, que elas já venham com essa cabeça de que vão ser servidores públicos, portanto, estarão a serviço da população. Acho que isso é muito importante. •
Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.
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