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O Brasil patina nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que vão além da proteção ambiental

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Inovação. A EDP inaugura no Ceará uma planta de hidrogênio verde e a Petrobras aposta na produção de energia eólica offshore. O Brasil tem vantagens competitivas neste setor, mas precisa projetar a integração produtiva e o desenvolvimento tecnológico – Imagem: EDP/Pecém/GOVCE e iStockphoto
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A retomada da perspectiva de acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia e a viagem do presidente Lula à China neste mês exigirão, além da pauta de economia e negócios habitual, enorme esforço do País para sintonizar a política externa, a política pública e a reindustrialização com a incontornável transição sustentável, tarefa que vai muito além da transição verde e precisa levar em conta o passivo social e institucional, a evolução tecnológica e as mudanças nas cadeias produtivas, alertam economistas.

As exigências europeias para a continuação das negociações abrangem tanto a área ambiental, inclusive o comprometimento do Brasil com metas de desmatamento, quanto a social, em especial no que se refere a garantias existentes na legislação trabalhista. A imposição dessas condições deixa claro, mais uma vez, que acima do interesse dos negócios há, por parte do bloco europeu, a demanda civilizatória de não adquirir produtos ou serviços obtidos à custa do agravamento do desequilíbrio do meio ambiente e do desrespeito aos padrões mínimos aceitáveis nas relações entre o capital e o trabalho, entre outras exigências. Quanto à visita à China, além da sua grande importância estratégica no contexto da disputa tecnológica e política com os EUA, sobressai a necessidade de convergência da pauta brasileira com os compromissos assumidos por Pequim de, a partir de 2021, neutralizar suas emissões de carbono até 2060.

A transição é mais difícil porque o País está fora da fronteira tecnológica

A lacuna mais evidente é que, até o momento, o Brasil só enviou um relatório sobre o estágio de cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável assumidos pelos países integrantes da Organização das Nações Unidas e não fez a lição de casa. Em debate recente realizado na Unicamp, a economista Karin Costa Vazquez, professora da Universidade de Fudan, na China, destacou, em relação ao Brasil, que: 1. Não houve, até agora, o engajamento de todos os atores envolvidos na transição para uma economia sustentável. 2. Não foi definido um papel claro para as instituições públicas de desenvolvimento no processo. 3. Não ocorreu a articulação entre política pública e política externa.

As dificuldades da transição afloram, por exemplo, na decisão da Petrobras de anunciar estudos para a instalação, em parceria com a norueguesa Equinor, de parques eólicos offshore em sete áreas da costa brasileira, em um investimento estimado de até 70 bilhões de reais. O projeto vai na direção certa, por visar a substituição de fonte energética não renovável por uma fonte renovável, mas não se integra a um plano geral de investimentos para a transição sustentável. Como era de se esperar, a proposta foi criticada pelas exportadoras de petróleo, atividade de interesse discutível para o País, que hoje perde dinheiro exportando óleo bruto e importando derivados, de maior valor que a commodity.

Alterações. As enchentes em São Paulo servem de alerta. A fábrica da Ford na Bahia pode parar nas mãos dos chineses – Imagem: Rovena Rosa/ABR e Carol Garcia/GOVBA

Os problemas diante da tão desejada transição sustentável são de grande magnitude, sublinham vários especialistas, inclusive porque o processo ocorre durante uma mudança de paradigma tecnológico e se entrelaça com um movimento de reordenação das cadeias produtivas, no qual a China tem um papel de destaque. O tema assume importância crescente com a aproximação da visita de Lula ao país, que vem ampliando o engajamento da sua indústria no processo de transição sustentável, em especial na área de energia, contexto que o Brasil pode aproveitar para fazer avançar a sua própria economia no mesmo rumo, desde que tenha claras, e desenvolva, as precondições para tirar partido da situação do momento, que é favorável. Um dos aspectos positivos da atual conjuntura, e que pode ser aproveitado pelo País, é o movimento de reshoring, ou de relocalização das bases produtivas dos EUA e da União Europeia para regiões mais próximas que os países do Leste Asiático.

Alguns efeitos da transição rumo a uma economia sustentável dão ideia das dimensões desse movimento. O fechamento das fontes de carvão no mundo resultará na perda de 185 milhões de empregos diretos e indiretos, e o conjunto dos países emergentes precisará investir 1 trilhão de dólares por ano para se engajar na mudança, valor que dentro de poucos anos passará a 2 trilhões anuais, sublinha o economista Marco Crocco, professor da UFMG e diretor do polo tecnológico de Belo Horizonte. Um dado positivo, segundo boa parte dos especialistas, é que o Brasil teria plenas condições de atender às metas de mudança climática. O problema está nos parâmetros de sustentabilidade, que incluem a área social. “O tema da transição sustentável é importante e complexo. Vivemos um momento complicado no Brasil, por conta das mudanças climáticas, como mostra a tragédia de São Sebastião”, destaca o economista Ricardo Carneiro, professor titular da Unicamp e organizador do debate. Há ao menos dois problemas de grande envergadura, diz, e o primeiro deles é como mudar o eixo de funcionamento das economias capitalistas, pois a transição sustentável vai numa direção que envolve mais risco e menos rentabilidade. “O capitalismo já fez isso antes, por meio de inovações radicais, mas a transformação necessária agora não pode ser realizada pelo mercado. Essa transformação produtiva é ainda mais difícil para o Brasil, porque o País está fora da fronteira tecnológica.”

O segundo problema é como financiar a transição. Na Alemanha, o Estado precisou entrar, pois o setor privado não deu conta. Muito menos daria conta no Brasil, com um mercado de capitais acanhado e outras limitações. “É preciso atacar os gargalos por meio de mudanças estruturais, não só nas questões ambientais, mas nas outras dimensões do desenvolvimento sustentável”, sublinha Vazquez. Antes de tudo, diz, é preciso levar em conta que a ideia de transição verde é diferente daquela de transição sustentável. A sustentabilidade diz respeito não só aos aspectos ambientais, mas também sociais, econômicos e de governança. Uma transição a partir de um conceito de sustentabilidade é mais abrangente do que modelos de baixo carbono ou modelo de transição climática verde ou socioambiental.

Muito da discussão na China, relata a economista, inclusive agora, às vésperas da visita do presidente Lula, está concentrado em investimentos e comércio exterior, em tecnologias verdes, painéis solares, hidrogênio verde. A última alternativa ganhou destaque no noticiário com a inauguração recente do primeiro projeto piloto de hidrogênio verde no Brasil, da EDP, no Ceará. “Eu sempre enfatizo, contudo, que comércio não é necessariamente desenvolvimento. A conexão dessas tecnologias com a transferência de tecnologia ou seu desenvolvimento conjunto, em alguma medida induzida ou facilitada pelo Estado, a meu ver é necessária para que de fato essa transição sustentável possa acontecer.”

Vários especialistas consideram os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e suas 169 metas um marco relevante para a orientação de políticas públicas em âmbito global. Os ODS reúnem questões urgentes como escolaridade, acesso à água e saneamento, emprego, segurança pública e crédito e foram estabelecidos pela ONU em 2015, com participação destacada do Brasil e compromisso dos países para atingi-los até 2030.

É preciso atacar os gargalos por meio de mudanças estruturais, não só via questões ambientais

Por aqui, o cumprimento dos ODS está seriamente comprometido, alertaram Vazquez e outros economistas em artigo publicado há mais de um ano no site desta revista, com base em um estudo da Associação Brasileira de Desenvolvimento. Sete ODS regrediram ou têm chance mínima de ser cumpridos até 2030, oito estão estagnados e apenas um avançou ou foi atingido. Entre os ODS mais atrasados, diz o estudo, estão a erradicação da pobreza, a promoção do trabalho decente e do crescimento econômico, a redução das desigualdades, a paz, justiça e instituições eficazes. Até agora, o Brasil encaminhou um único relatório voluntário sobre o andamento da agenda, em 2017.

Recriada recentemente, a Comissão Nacional para os ODS, constituída em 2017 e extinta em 2019, pode contribuir para a articulação dos órgãos públicos, sociedade civil, setor privado e instituições financeiras de desenvolvimento com vista às metas da agenda 2030. Descompassos entre o Brasil e os demais países na transição sustentável significam risco relevante, entre outros, no caso do petróleo, um produto de exportação importante do Brasil para a China. Se os chineses avançarem mais rápido na sua substituição por fonte de energia renovável, o País perderá um mercado significativo para a ­commodity. Este é só um exemplo da importância de o País se antecipar e se reposicionar em novas frentes comerciais e no investimento em indústrias de baixo carbono, concordam os participantes do debate.

Há oportunidades nos mercados de créditos de carbono, sublinha Vazquez. “Como o Brasil tem uma vocação natural nesse setor e a China é um potencial comprador desses créditos para completar a sua transição, as frentes de cooperação que se abrem nessa esfera são bastante amplas e vantajosas para o Brasil e a China.” Um dos principais desafios, segundo Crocco, é como fazer o processo de reindustrialização de forma limpa. Nesse sentido, a possibilidade de a chinesa BYD assumir a planta da Ford na Bahia, fechada em 2021, por certo será um dos pontos da pauta do encontro de Lula com o presidente Xi Jinping e talvez aponte um caminho. Maior produtora mundial de carros elétricos, a empresa realiza, desde 2015, investimentos no Brasil na produção industrial em setores associados à transição energética e mantém parcerias tecnológicas com universidades e institutos de pesquisa locais. Na transição energética e climática, o Brasil anda bem na mesma proporção em que vai mal quando se trata da transição sustentável, que envolve aspectos socioeconômicos e de solidez das instituições, antigas pendências. •

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Só no gogó’

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